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Num processo de asfixia financeira lenta, que alguns economistas compararam à tortura chinesa, os asiáticos dirigiram seus recursos a outros investimentos
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ÁSIA E OCEANIA
por Gilson Schwartz
A ruptura do pacto transatlântico no episódio
da invasão ao Iraque em 2003 foi o estopim de
um desarranjo ainda mais completo do sistema de poder internacional implementado
pelos ocidentais depois da Segunda Guerra Mundial. O
fim da ONU foi rapidamente seguido pelo desmanche
progressivo da Organização Mundial do Comércio, do
FMI e do Banco Mundial. No epicentro da "débâcle"
ocidental, o divisor de águas foi a crise fiscal que eclodiu
no final do governo Bush.
Naquele período, as economias do Sudeste Asiático,
da China e do Japão já acumulavam o maior estoque de
reservas em dólar do mundo. Depois da guerra no
Oriente Médio, os EUA foram obrigados a buscar financiamento nos mercados internacionais para bancar
a reconstrução e a dolarização ainda mais acentuada da
economia mundial.
O destino do dólar passou a depender da disposição
de empresas e governos asiáticos em continuar trocando seus dólares por títulos de dívida pública emitidos
pelo Tesouro norte-americano. Se houvesse disposição
para comprar papéis do governo dos EUA, o desequilíbrio fiscal crescente da economia norte-americana seria
financiado com dinheiro asiático.
Os principais governos da Ásia, no entanto, tinham
consciência de que chegara o momento da vitória econômica final sobre as potências que, por séculos, os haviam colonizado ou derrotado militarmente. Num processo de asfixia financeira lenta e gradual, que alguns
economistas compararam a uma nova modalidade de
tortura chinesa, os asiáticos dirigiram seus recursos a outros investimentos,
fortalecendo os laços econômicos desenhados pacientemente por meio de dezenas de acordos comerciais regionais, uma modalidade de organização que já
no final do século 20 se tornara conhecida como "regionalismo aberto".
Enquanto os juros subiam nos EUA, mantendo a economia norte-americana
estagnada e o sistema financeiro europeu limitado, os governos asiáticos investiram em redes produtivas e tecnológicas regionais. Os juros altos nos EUA asfixiavam os países e acabaram inviabilizando o próprio FMI, sobretudo depois
da moratória brasileira de 2007 (a inviabilidade de uma meta de ajuste fiscal de
10% do PIB levou antigos neo-ortodoxos, como o então diretor-gerente do FMI
e ex-ministro da Fazenda de Lula, Antônio Palocci Filho, a pedir demissão do
cargo). Os governos asiáticos, com poupança doméstica e gerando "megassaldos" positivos em suas relações comerciais com o Ocidente (especialmente depois da depressão dos preços do petróleo), voltaram ao comando dos fluxos internacionais de investimento e desenvolvimento de novas tecnologias.
Embora o regionalismo aberto e as redes produtivas articuladas por décadas
de políticas industriais, científicas e tecnológicas dos Estados asiáticos fossem
uma infra-estrutura em si mesma poderosa para receber esse impulso de desenvolvimento regional depois do fim do sistema global, a rigor foi um desastre
biológico de proporções apocalípticas que levou a um aprofundamento acelerado desse projeto regionalizante.
Exatamente no final da guerra anglo-americana ao
Iraque, a Ásia se tornou palco da maior hecatombe
epidêmica da história desde a "peste negra" do período medieval europeu. Conhecida como "pneumonia asiática", a virulenta enfermidade ceifou mais
de 1 milhão de vítimas e condenou nós estratégicos
do sistema asiático, como Hong Kong, Cingapura e
Xangai, à extinção. A quebradeira de empresas aéreas e companhias de comércio soou o grande alarme entre as lideranças regionais. Iniciou-se um programa de longo prazo de dispersão das populações
asiáticas pela Oceania. O que antes não parecia mais
que um "não-lugar" composto por constelações de
ilhas se tornou em poucos anos uma rede de paraísos
biológicos para onde se transferiram as famílias mais
ricas, as empresas mais informatizadas e as instituições financeiras mais ágeis.
Novas redes de comércio e finanças de alcance
mundial floresceram em locais que em décadas anteriores apareciam apenas em guias turísticos de muito ricos ou em estudos de antropologia cultural: Vanuatu, Fiji, Tonga e Tuvalu tornaram-se pólos de um
eixo de desenvolvimento que também explorava
vantagens de localização ante as economias do Havaí, da Austrália e da Nova Zelândia.
O relativo declínio depois da morte em massa nos
enclaves litorâneos da China deu espaço a novos planos de desenvolvimento no interior do país, frente
que se expandiu também depois da guerra ao Iraque
com os investimentos do Banco de Desenvolvimento Asiático no oleoduto Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão. A China tornou-se a grande fiadora
da "pax asiática", centrada no acordo entre Índia e
Paquistão, que foi costurado com investimentos desse tipo em infra-estrutura estratégica.
Das fronteiras com um Oriente Médio já completamente feudalizado e inviabilizado por bandos terroristas aos contatos com os enclaves havaiano e polinésio, Ásia e Oceania ganharam uma nova identidade na história humana.
Pela primeira vez, o oceano Pacífico fez realmente
justiça ao seu nome. A dispersão em rede por um
vasto "território" feito de ilhas criou oportunidades
de negócios para novas empresas de aviação de pequeno e médio porte. A prosperidade voltou à região.
Obviamente ainda havia gigantescas populações
consumidoras na Índia, Indonésia, China e Austrália
(onde houve uma explosão de imigrantes do Sudeste
Asiático no auge da pneumonia asiática).
Na prática, em 2023 o único espaço econômico que
ainda faz algum sentido como sistema e conjunto de
Estados com capacidade de ação é, literalmente, feito
mais de água salgada do que de terra. É um sistema
aberto e auto-organizado que mais uma vez demonstra a vantagem competitiva dos governos asiáticos na formação de redes com espírito estratégico
diante de desafios históricos de grande dramaticidade.
Gilson Schwartz é articulista da Folha, diretor acadêmico da Cidade do Conhecimento (USP) e autor de "Japão de Olhos Abertos"
(ed. Nobel) e "Lições da Economia Asiática" (ed. Saraiva).
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