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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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Alain Robbe-Grillet se perde numa sucessão de enigmas gratuitos em seu romance "A Retomada"

A charada sem esfinge

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

Tudo começa em 1949, quando o espião francês Henri Robin atravessa de trem a Alemanha arruinada. Viaja em direção a Berlim, onde irá assassinar (desconfiamos, ele não diz) um oficial alemão chamado Von Brücke. No trem, Robin reencontra uma figura que não via desde muito tempo: seu sósia, seu duplo, ocupando o lugar em que ele próprio, poucos minutos antes, estivera sentado. "O passageiro abaixou lentamente o jornal para me olhar, com a candura tranquila de um proprietário seguro de suas prerrogativas, e foi sem nenhuma vacilação que reconheci, à minha frente, os meus próprios traços: rosto assimétrico, nariz forte, convexo (...) Ao me encarar, o homem deu um vago sorriso de surpresa. Sua mão direita largou as páginas impressas para coçar o sulco vertical na base das narinas. Lembrei então do bigode postiço que eu estava usando nessa missão (...) O rosto estampado do outro lado do espelho era absolutamente imberbe. Num reflexo descontrolado, passei o dedo por meu lábio superior. O bigode, evidentemente, ainda estava ali, no seu lugar." O narrador se lembra de ter encontrado esse sósia na infância; haverá de topar com ele outras vezes. O tom de intriga policial prevalece em todo o prólogo deste romance de Alain Robbe-Grillet. Um dos nomes mais célebres da literatura de vanguarda francesa nos anos 50 e 60, teórico do "nouveau roman" e roteirista do belo e labiríntico filme de Alain Resnais "O Ano Passado em Marienbad", Alain Robbe-Grillet estava havia quase 20 anos sem publicar nenhum romance, e este, "A Retomada", começa de forma bastante linear, sem sombra de experimentalismo ou de complicações formais muito intimidantes. Na sua santa inocência, este resenhista acreditou que ia ler um livro de Robbe-Grillet sem tropeçar em armadilhas de texto e jogos narrativos insolúveis.

Expectativas...
Os cinco capítulos seguintes destroem impiedosamente essa expectativa. Henri Robin não existe; tem outro nome; não assassinou Von Brücke; Von Brücke também não é quem pensamos, e sim seu filho, ou seu irmão, ou seu sósia: e nada disso tem muita importância a partir da página 30 mais ou menos, quando a rede de citações e de espelhamentos do livro passa a colocar outras exigências ao leitor. Por exemplo: a de saber que o texto faz alusões a um livro homônimo de Kierkegaard; que "A Retomada", "La Reprise" em francês, por outro lado acena para um romance de Nabokov, "Despair", em francês traduzido como "La Méprise", no qual também o narrador está às voltas com seu duplo; que Freud, num vagão de trem, teve a repentina impressão de estar diante de seu duplo; que Robbe-Grillet, neste livro de 2001, "retoma" alguns motivos centrais de "Les Gommes", obra da década de 50. Note que "Von Brücke", em alemão, significa "da Ponte", e que "Dupont" era o nome do herói de "Les Gommes". E como os dois romances, na verdade, refazem a história de Édipo, é por isso que o espião francês em Berlim vai parar numa boate chamada "Die Sphinx", "A Esfinge", supostamente dirigida por uma iugoslava de nome Joelle Kast, que é Jocasta, mas também Jo, isto é, Io, a ninfa raptada por Júpiter, a não ser que J.K. seja também, como especula o narrador, uma homenagem a Kafka, e ainda a Joris-Karl Huysmans, o autor de "Às Avessas"? E por que não também a Julia Kristeva?

Decapitação
A psicanalista e escritora, nome ainda mais célebre do que o de Robbe-Grillet junto à vanguarda literária parisiense nas décadas de 60 e 70, acaba de publicar um romance policial, em que nas primeiras páginas uma decapitação oferece pretexto para citações embutidas de Mallarmé e para o surgimento de um delegado chamado Rilsky.
"Possessões" (212 págs., R$ 29,00, ed. Rocco), o romance de Julia Kristeva, parece ter um ímpeto paródico, um bom-humor, que falta muito no livro de Robbe-Grillet. "A Retomada", com todas as suas cabriolas narrativas, chega a ter de interessante uma certa compostura clássica, meio rígida até, por força de sua fervorosa crença na dissimulação e na trapaça textual. Se não há humor, há ironia, camadas e mais camadas de ironia, cada vez mais espessa, em "A Retomada".
O efeito de tanta sutileza acaba sendo bastante infeliz. Trata-se, em última análise, de bajular o leitor a cada pseudoenigma que lhe é dado resolver: piscadelas de olho e promessas de cumplicidade se sucedem, premiando o esperto que decifrar as charadas que vão sendo propostas sem descanso. A esfinge da tragédia não era, contudo, tão coquete, e Édipo tinha assuntos mais importantes a resolver.


A Retomada
192 págs., R$ 32,00 de Alain Robbe-Grillet. Trad. Ari Roitman. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).


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