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Alain Robbe-Grillet se perde numa sucessão de enigmas gratuitos em seu romance "A Retomada"
A charada sem esfinge
Marcelo Coelho
Colunista da Folha
Tudo começa em 1949, quando o
espião francês Henri Robin atravessa de trem a Alemanha arruinada. Viaja em direção a Berlim,
onde irá assassinar (desconfiamos, ele
não diz) um oficial alemão chamado
Von Brücke.
No trem, Robin reencontra uma figura
que não via desde muito tempo: seu sósia, seu duplo, ocupando o lugar em que
ele próprio, poucos minutos antes, estivera sentado. "O passageiro abaixou lentamente o jornal para me olhar, com a
candura tranquila de um proprietário seguro de suas prerrogativas, e foi sem nenhuma vacilação que reconheci, à minha
frente, os meus próprios traços: rosto assimétrico, nariz forte, convexo (...) Ao
me encarar, o homem deu um vago sorriso de surpresa. Sua mão direita largou
as páginas impressas para coçar o sulco
vertical na base das narinas. Lembrei então do bigode postiço que eu estava
usando nessa missão (...) O rosto estampado do outro lado do espelho era absolutamente imberbe. Num reflexo descontrolado, passei o dedo por meu lábio
superior. O bigode, evidentemente, ainda estava ali, no seu lugar."
O narrador se lembra de ter encontrado esse sósia na infância; haverá de topar
com ele outras vezes. O tom de intriga
policial prevalece em todo o prólogo deste romance de Alain Robbe-Grillet. Um
dos nomes mais célebres da literatura de
vanguarda francesa nos anos 50 e 60, teórico do "nouveau roman" e roteirista do
belo e labiríntico filme de Alain Resnais
"O Ano Passado em Marienbad", Alain
Robbe-Grillet estava havia quase 20 anos
sem publicar nenhum romance, e este,
"A Retomada", começa de forma bastante linear, sem sombra de experimentalismo ou de complicações formais
muito intimidantes. Na sua santa inocência, este resenhista acreditou que ia
ler um livro de Robbe-Grillet sem tropeçar em armadilhas de texto e jogos narrativos insolúveis.
Expectativas...
Os cinco capítulos
seguintes destroem impiedosamente essa expectativa. Henri Robin não existe;
tem outro nome; não assassinou Von
Brücke; Von Brücke também não é
quem pensamos, e sim seu filho, ou seu
irmão, ou seu sósia: e nada disso tem
muita importância a partir da página 30
mais ou menos, quando a rede de citações e de espelhamentos do livro passa a
colocar outras exigências ao leitor.
Por exemplo: a de saber que o texto faz
alusões a um livro homônimo de Kierkegaard; que "A Retomada", "La Reprise"
em francês, por outro lado acena para
um romance de Nabokov, "Despair", em
francês traduzido como "La Méprise",
no qual também o narrador está às voltas
com seu duplo; que Freud, num vagão de
trem, teve a repentina impressão de estar
diante de seu duplo; que Robbe-Grillet,
neste livro de 2001, "retoma" alguns
motivos centrais de "Les Gommes",
obra da década de 50.
Note que "Von Brücke", em alemão,
significa "da Ponte", e que "Dupont"
era o nome do herói de "Les Gommes".
E como os dois romances, na verdade,
refazem a história de Édipo, é por isso
que o espião francês em Berlim vai parar numa boate chamada "Die Sphinx",
"A Esfinge", supostamente dirigida por
uma iugoslava de nome Joelle Kast, que
é Jocasta, mas também Jo, isto é, Io, a
ninfa raptada por Júpiter, a não ser que
J.K. seja também, como especula o narrador, uma homenagem a Kafka, e ainda a Joris-Karl Huysmans, o autor de
"Às Avessas"? E por que não também a
Julia Kristeva?
Decapitação
A psicanalista e escritora, nome ainda mais célebre do que o
de Robbe-Grillet junto à vanguarda literária parisiense nas décadas de 60 e
70, acaba de publicar um romance policial, em que nas primeiras páginas uma
decapitação oferece pretexto para citações embutidas de Mallarmé e para o
surgimento de um delegado chamado
Rilsky.
"Possessões" (212 págs., R$ 29,00, ed.
Rocco), o romance de Julia Kristeva,
parece ter um ímpeto paródico, um
bom-humor, que falta muito no livro
de Robbe-Grillet. "A Retomada", com
todas as suas cabriolas narrativas, chega a ter de interessante uma certa compostura clássica, meio rígida até, por
força de sua fervorosa crença na dissimulação e na trapaça textual. Se não há
humor, há ironia, camadas e mais camadas de ironia, cada vez mais espessa,
em "A Retomada".
O efeito de tanta sutileza acaba sendo
bastante infeliz. Trata-se, em última
análise, de bajular o leitor a cada pseudoenigma que lhe é dado resolver: piscadelas de olho e promessas de cumplicidade se sucedem, premiando o esperto que decifrar as charadas que vão sendo propostas sem descanso. A esfinge
da tragédia não era, contudo, tão coquete, e Édipo tinha assuntos mais importantes a resolver.
A Retomada
192 págs., R$ 32,00
de Alain Robbe-Grillet. Trad. Ari Roitman. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).
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