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Em "Eros, Tecelão de Mitos", Joaquim Brasil Fontes
reafirma a importância de Safo na lírica ocidental
Figurações do erotismo feminino
André Malta Campos
especial para a Folha
É com dupla surpresa que lemos as
páginas de "Eros, Tecelão de Mitos", livro de Joaquim Brasil Fontes sobre a poesia de Safo de Lesbos, a renomada cantora do amor entre
mulheres. Surpresa, primeiramente,
porque esse trabalho agora reeditado
vem preencher uma grave lacuna nos
nossos estudos brasileiros da lírica em
geral; e surpresa, também, porque nele o
autor consegue fundir, com competência, erudição acadêmica e ensaísmo literário, conferindo-lhe singularidade no
panorama das interpretações da poesia
grega antiga. Se a erudição lhe possibilita
o trânsito pela rigorosa bibliografia especializada, com análises certeiras e informações valiosas, o ensaísmo, num movimento contrário, mas quase simultâneo,
faz com que uma leveza na escrita e um
saudável descompromisso penetrem o
texto. O resultado é uma forma híbrida,
com um conteúdo híbrido e desconcertante.
Que o leitor não espere encontrar no livro apenas a poesia arcaica de Safo, que
floresceu por volta de 600 a.C., mas a de
Safo e sua (per)versão pelos modernos,
pelos latinos, pelos alexandrinos e pelos
gregos antigos. Nesse movimento retroativo, que marca a primeira parte,
Brasil Fontes inicialmente comenta o uso
feito por Charles Baudelaire, no século
19, da história já popular na antiguidade
do suicídio de Safo, rejeitada pelo barqueiro Fáon, por quem renunciara ao
amor às mulheres; em "As Flores do
Mal", a figura de Safo, nos diz Brasil Fontes, dramatiza o destino do artista e se
identifica com a do poeta maldito e desterrado.
Prosa fragmentária
Já na carta 15
das "Heróides" de Ovídio, escritor do final do século 1º a.C., descobrimos que o
retrato de Safo vem se conformar aos padrões retóricos augustanos; o autor
aponta com minúcia, nesse que é um dos
trechos mais interessantes do livro, como o elegante discurso da poeta a Fáon
-construído por Ovídio e adaptado aos
moldes do amor homossexual pederástico- é fruto de uma hábil manipulação
da convenção poética da época, que não
podia conceber a figuração do erotismo
feminino. Em seguida, atravessamos
anedotas e comentários diversos sobre
Safo e sua vida, numa prosa interrompida e ela mesma fragmentária, que mimetiza a obra da poeta, citada pelos antigos
parcialmente aqui e acolá e tirada dos rolos de papiro que se vão revelando, restaurando e decifrando continuamente.
É só depois desse percurso que volta no
tempo que se chega, na segunda parte, à
análise dos versos sáficos de que dispomos, uma pequena porção de uma obra
que teria milhares deles. Guiado sobretudo pelo inglês Denys Page, Brasil Fontes
aborda, por exemplo, na análise exemplar da "Ode a Afrodite" (o único poema
que temos na íntegra), a caracterização
da deusa, com seus epítetos e seu sorriso
contraposto à dor humana, a concretitude da linguagem arcaica, os lugares-comuns e as especificidades, a relação com
a épica de Homero. No último caso, talvez não devêssemos imaginar uma passagem radical e uma mudança de valores
do contexto épico para o lírico, como se
tivessem se sucedido no tempo.
Sintomas do eu-lírico
Mas essas
questões estritamente acadêmicas são
elegantemente contornadas pelo autor:
não é esse seu foco. Seu foco é circular,
flanar por esse corpus poético dilacerado, em que lesbianismo não se confunde
com erotismo vulgar, mas antes com
uma sublime simplicidade e delicadeza
-perturbada às vezes na versão do tradutor-, como nesta descrição dos sintomas do eu-lírico diante da visão da
amada: "Um frio suor me recobre, um
frêmito do meu corpo/ se apodera, mais
verde que as ervas fico;/ que estou a um
passo da morte".
O percurso não é linear: antes de chegarmos à terceira parte, que contém todos os versos restantes em grego de Safo,
com sua tradução para o português, passamos ainda por vestígios de Platão,
Rimbaud, Lautréamont e por outros depois... Brasil Fontes, admirado, sobre a
poesia amorosa de Safo ao final nos fala
pouco, porque intui que a eloquência da
poesia amorosa de Safo reside em sua
fragmentária e providencial escassez.
Como não esperar essa sabedoria de
quem se auto-intitula um amador, em
dois ou três sentidos dessa palavra?
André Malta Campos é professor de língua e literatura grega na USP, autor de "O Resgate do Cadáver - O Último Canto da Ilíada" (ed. Humanitas).
Eros, Tecelão de Mitos
608 págs., R$ 54,00
de Joaquim Brasil Fontes. Ed. Iluminuras (r. Oscar
Freire, 1.233, CEP 01426-001, São Paulo, SP, tel.
0/xx/11/ 3068-9433).
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