São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004 |
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+ sociedade DECLARAÇÕES MORALIZANTES DE BOM-TOM EVIDENCIAM A INCAPACIDADE DE POLÍTICOS BRASILEIROS EM SUPERAR SEU PENDOR IRÔNICO-MALANDRO A NOTA FALSA DA CORDIALIDADE
Kathrin H. Rosenfield
Uma simples charge: Brizola,
sorrindo, mãos nos bolsos.
Atrás dele dois cidadãos comentam: "É o moralizador da
política brasileira. Acabou com a bebida
no PT e com o namoro no PDT...". Em
outras palavras -depois das vassouras
de Jânio, dos marajás de Collor e da "ética na política" do PT, o "moralizador"
tornou-se o clichê número um. Quando
Brizola mostrou sua indignação com o
assédio sexual, afirmando que "a razão
costuma estar com a mulher" ("Zero
Hora", 15/05/04, pág. 6), o que estávamos
ouvindo é uma nota falsa do louvável
serviço prestado ao feminismo e à civilidade: o caráter sempre seletivo e ambíguo das declarações moralizantes.
Com estupenda, calculada e escandalosa violência, Bernhard atrapalha a "paz" do pós-guerra iluminando a violência implícita do convívio forçado dos colaboradores e das vítimas do nazismo -convívio esse que a assídua política cultural e turística banha numa luz ambiguamente amena. O ácido bernhardiano começa a despojar o teatro e a música -as vacas sagradas da cultura austríaca- da sua aura transcendente, deixando transparecer infinitos comprometimentos com as convicções nazistas e racistas que reinam sob a superfície cordial. Lógica da discriminação Bernhard muda o aparelho acusatório montado pelas esquerdas politizadas. Se estas procuravam separar culpados e inocentes, Bernhard se debruça sobre a análise da linguagem. Na esteira da filosofia de Wittgenstein, ele desvela a realidade das práticas ética e política menos na vontade dos agentes do que nos jogos de linguagem que predominam na comunidade. As peças de Bernhard mostram de modo doloroso como o uso da linguagem ultrapassa as intenções, perpetuando a lógica da discriminação até mesmo nas vítimas. Compartilhando os mesmos hábitos de fala, judeus e não-judeus tornam-se sorrateiramente irmãos cúmplices. À revelia das intenções individuais e sem abolir o sofrimento da vítima e o gozo do opressor, todos participam de um miasma imposto pelo jogo sórdido da linguagem. Magnífico exemplo desse problema é o diálogo entre Robert e sua irmã ("Heldenplatz"), quando o primeiro interpreta como um gesto anti-semita o fato de que um transeunte tenha cuspido na sua sobrinha. A irmã objeta que isso poderia ter sido um simples engano -ao que Robert responde que não pode haver engano quando "alguém cospe em alguém que nem mesmo conhece, simplesmente porque ele pode ver que é judeu". Bernhard desvenda nessa discussão a lógica da racionalização malsã de um gesto que deveria ser inadmissível moral e afetivamente. A indignação não se volta contra a cuspida (condenável em qualquer caso), porém se fixa nos argumentos discriminatórios nazistas e racistas (e assim reitera sua lógica). Uma vez abalada a certeza de que cuspir sobre alguém é inadmissível, vítimas e agressores reforçam mutuamente os raciocínios malignos da rejeição do outro. Bernhard dessacraliza a vítima, tratando judeus e não-judeus tão somente como austríacos -presos na lógica maligna do desprezo da alteridade que se reproduz nos próprios desprezados. Jogo sórdido No intuito de pôr em cena a rede simbólica que ultrapassa a vontade subjetiva, Bernhard viola o clichê do judeu como discreta e cultivada vítima da barbárie nazista. Deliberadamente, ele atiça (para desmascará-lo) o anti-semitismo latente ao colocar as acusações contra a Áustria na boca de um velho judeu rancoroso. Rompendo com a dicotomia estereotipada que opõe a boa e inocente vítima ao seu abjeto carrasco, Bernhard desvenda o problema de ser austríaco que se coloca para judeus e não-judeus, já que todos são forçados a participar do mesmo sistema simbólico, no qual a identidade se constrói por atos de falas e gestos. E um dos jogos predominantes é o do encobrimento da culpa e da vergonha, que, ao passar por infinitas racionalizações, se tornam intercambiáveis (assinalemos aqui, entre parênteses, que um jogo análogo poderia estar ocorrendo também entre nós no Brasil, se acreditarmos em Roberto DaMatta quando analisa -no favor, na malandragem, na familiaridade sorridente- a mútua ocultação da discriminação). Seja como for, na Áustria, Bernhard expunha a sordidez desse jogo atiçando a difusa auto-imagem negativa dos austríacos -recuperada teatralmente como potencial explosivo dos escândalos provocados por Bernhard. No universo de Bernhard, vida e palco se confundem para desvendar que não há inocentes: ninguém escapa da máquina do mal e da culpa. O escritor participa do sombrio espetáculo das ambigüidades míticas da linguagem e do imaginário que limitam a liberdade subjetiva. Impiedoso consigo mesmo, Bernhard se incluía numa performance sem fim, denunciando os negócios culturais (os seus próprios e os dos outros) como máscaras das pretensões que alimentam -antes e depois da guerra- a mesma triste malha da rejeição. Não existe no Brasil nenhum exemplo desse tipo de autodilaceramento. Para sentir os tabus que Bernhard atropela, seria necessário imaginar um escritor brasileiro que encenasse a maldade do regime militar representando um sobrevivente do Araguaia falando a mesma linguagem dos torturadores e generais do Exército. Que escritor ousaria representar as ideologias "corretas" de um Fernando Henrique ou um [José] Dirceu (ou de qualquer outra vítima da repressão) roídas na sua linguagem pela lógica da repressão? É difícil imaginar um artista perseguir a idéia de Gilberto Freyre, que acusava a casa-grande de ter pervertido a senzala. Um Thomas Bernhard brasileiro mostraria como essas contaminações retroagem e se potencializam, transformando a dialética da malandragem em dialética da marginalidade -abolindo certezas éticas ao ponto de considerarmos o jogo do bicho (e, por que não?, o narcotráfico) como negócios e carreiras entre outras (tema tratado por João Cezar de Castro Rocha no Mais! de 29/02/04). No império brasileiro da cordialidade e das conciliações ilusórias a reflexão sobre os miasmas nacionais costuma esfumar-se na verve sarcástica de um punhado de jornalistas -e a ironia cria a (ilusão da) distância para com o mal no qual todos nós vivemos. Kathrin H. Rosenfield é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM). Texto Anterior: Mestiçagem fora de lugar Próximo Texto: + brasil 505 d.C.: O shopping de restrições democráticas Índice |
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