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+ brasil 505 d.C.
Temor à desordem pode impedir
abertura política na China e consolidar
nova forma de capitalismo autoritário
O shopping de restrições democráticas
Boris Fausto
Com suas imensas transformações, com o invejável crescimento do PIB por anos seguidos, a
China é um dos pólos de referência das questões econômicas globais. Ao
mesmo tempo, não são muitas as análises do regime político chinês, não obstante a óbvia interpenetração entre política e economia. As razões para esse fato
talvez possam ser assim resumidas: de
um lado, o pragmatismo das façanhas e
fracassos econômicos, considerados isoladamente, concentra a atenção dos analistas; de outro, o regime político suscita
muito mais dúvidas do que certezas, desafiando as previsões.
Algumas coisas são certas. Para manter-se no poder, o Partido Comunista da
China beneficiou-se da posição geográfica do país, distante do "contágio" democrático, que atingiu a União Soviética. A
burocracia partidária chinesa beneficiou-se também do exemplo do processo
de liquidação do regime comunista daquele país e dos países-satélites, cujos riscos desintegradores deveriam ser evitados a qualquer preço. Sem emitir aqui
um juízo de valor, esse é aliás um exemplo de que a história ensina, como ensinou os sucessivos governos americanos,
em suas relações com a América Latina,
após o trauma provocado pela Revolução Cubana.
A China de hoje, como se sabe, combina uma clara e agressiva opção pelo capitalismo, na esfera da economia, com
uma autocracia de partido único e dura
restrição às liberdades democráticas, no
plano político. A pergunta maior é a seguinte: os comunistas chineses criaram
um regime estável, nessa combinação
que impropriamente se chama de "caminho chinês para o capitalismo", ou estamos diante de uma longa transição que
acabará desembocando no par, visto como tradicional, constituído por capitalismo e democracia?
Otimistas e pessimistas
Depois do
inesperado desfecho do caso soviético, a
maioria das análises, com boas razões,
tem se caracterizado pela prudência.
Ainda assim, é possível constatar uma
divisão esquemática, entre "otimistas" e
"pessimistas". Os primeiros prestam algum tributo a uma teoria corrente, em
meados do século passado, de que o
avanço do sistema econômico capitalista
traria consigo a formação de uma ampla
classe média e levaria, dessa forma, a um
processo de democratização de países de
regime autoritário.
Em abono não propriamente dessa tese, hoje ultrapassada, mas de uma versão
otimista do que vem ocorrendo na China
nos últimos anos, alguns fatos devem ser
assinalados. Os delírios da Revolução
Cultural pertencem ao passado, o culto
da personalidade dos dirigentes se reduziu muito, a inscrição no Partido Comunista se abriu aos empreendedores capitalistas e surgiu um leque de associações,
com objetivos bastante diversos.
Entretanto os pessimistas não negam
que a China de hoje tenha um regime
menos repressivo, quando comparado
com o dos tempos de Mao Tse-tung e sucessores. A pergunta não é essa, e sim se a
relativa descompressão corresponde a
passos importantes no caminho pacífico
rumo à instalação de uma democracia
capitalista, ou se estamos apenas diante
de uma reformulação do regime autoritário, com o objetivo de perpetuá-lo em
seus componentes essenciais.
Há um conjunto de razões para nos inclinarmos pela versão pessimista. Em
primeiro lugar -e há aí, em parte, um
reflexo do caso soviético-, é muito difundida não só interna, como externamente, a versão de que a tentativa de efetuar uma efetiva democratização da China levaria o país ao "caos" -uma situação temida, mais do que qualquer coisa,
por investidores "vermelhos" ou estrangeiros, pelo governo chinês e por todos
os demais governos que contam no cenário internacional.
Tensões estruturais
Esse temor é
um dos fatores que faz com que sejam
minoritários e destituídos de significativo apoio externo os setores da sociedade
chinesa que lutam pela democracia. Entre eles, certamente não se incluem os
novos capitalistas, acomodados na companhia da burocracia partidária, de
quem recebem não poucos favores.
Por outro lado, seria errôneo tomar o
florescimento associativo -em si mesmo um fato positivo- como uma clara
afirmação da sociedade civil. Tais associações, formadas por igrejas, escritores
ou cientistas, estão sob a dependência do
Estado, que continua perseguindo duramente os organizadores de partidos democráticos, a parte majoritária da Igreja
Católica que não compactua com os ditames do regime e os movimentos espirituais, como o Falun Gong. No plano externo, o Tibete ocupado é submetido a
uma dura repressão e qualquer sugestão
de independência de Taiwan recebe como resposta os mais violentos ataques
nos meios oficiais chineses.
É certo que a China sofre grandes tensões, como aponta um autor situado entre os pessimistas, Bruce J. Dickson, em
um livro recente -"Red Capitalists in
China - The Party, Private Entrepreneurs, and Prospects of Political Change" (Cambridge University Press). Tais
tensões têm a ver com os problemas gerados pelas profundas transformações
estruturais: crescente desigualdade, especialmente entre o setor urbano da costa e o rural, corrupção generalizada, desemprego, degradação do ambiente.
Mas seriam esses fatores -que apontam para um quadro diverso da progressiva passagem ao regime democrático,
sob pressão dos novos capitalistas e da
classe média- capazes de gerar as condições para a implantação da democracia? Ou seriam eles propiciadores de revoltas que poderiam acabar conduzindo
ao temível caos?
É difícil responder a essas questões.
Mas é visível o fato de que, depois de terem se diversificado, os caminhos da
China e da Rússia de Putin, guardadas as
diferenças, parecem se aproximar. Num
e noutro país há um processo -formal
na China, mais informal na Rússia- de
negação das liberdades, de controle da
mídia, de associação do Estado e dos
grandes empresários, em que o poder estatal é determinante em última instância.
Tudo isso justificado e amparado socialmente pelo temor à desordem. Desse
modo, estariam os dois grandes centros
da "revolução proletária" do século 20 se
encaminhando para formas novas e estáveis de um capitalismo autoritário?
Boris Fausto é historiador e preside o conselho
acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30"
(Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção
"Brasil 505 d.C." (depois de Cabral), do Mais!.
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