|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
DOIS ARTIGOS
DISCUTEM
O BEST-SELLER
MUNDIAL
DE DAN BROWN,
AGORA LANÇADO
NO BRASIL
Decifrando o Código Da Vinci
Jean Galard
especial para a Folha
Os elogios publicitários que
acompanham, na capa, o quarto romance de Dan Brown não
são enganosos: "O Código Da
Vinci" é um livro "envolvente", que se lê
"de arrancada", "não conseguimos largá-lo". No entanto até o leitor mais cativado encontra, de vez em quando, ocasião para recuperar o fôlego e se fazer
duas ou três perguntas.
Por exemplo, quais são os motivos do
sucesso extraordinário alcançado por esse best-seller em todo o mundo, em cerca
de 40 línguas até hoje? Esse sucesso se deve às qualidades intrínsecas da obra? Ou
é o efeito, automaticamente amplificado,
de uma celebridade já conquistada? A
mesma interrogação assalta, como sabemos, os visitantes que examinam "A
Gioconda", guardadas as proporções.
Outra pergunta se impõe rapidamente.
Como a ficção romanesca e a informação
histórica estão aqui imbricadas? Ora trata-se ostensivamente de ficção, ora os fatos históricos citados são reais.
Mas, com maior freqüência, o romance se desenrola em um espaço intermediário indefinível. A grande habilidade
de Dan Brown é evidentemente provocar
a dúvida a todo momento sobre a verdade do que ele conta e, imediatamente,
fornecer bons motivos para aceitar suas
"revelações".
Aqui e ali há alguns erros manifestos.
Na longa parte que se passa nos recintos
do Museu do Louvre, a topografia é simplesmente falsa em vários pontos. Suponhamos caridosamente que o autor o tenha feito de propósito.
Provavelmente ele quis contribuir para
a segurança do museu, enganando deliberadamente os intrusos que se insinuariam à noite com más intenções. Ou ele
pretendeu, generosamente, aumentar a
freqüência à Grande Galeria, incitando
seus leitores a visitar em peregrinação o
local do crime?
Enquanto isso, deixando de lado algumas inverossimilhanças que parecem
destinadas a saltar aos olhos, há uma oscilação sistemática entre o provável e o
impossível e, para o leitor, entre a dúvida
e a aceitação. Mas as revelações maiores
-principalmente sobre a família de
Cristo- acabam por assumir um aspecto plausível. Segundo o humor do leitor e
também segundo sua fé eventual, o equívoco pode parecer divertido ou escandaloso, e, o autor, admiravelmente hábil ou
diabolicamente perverso.
Dan Brown conduz seu trabalho atribuindo-se certas facilidades que lhe são
muito úteis. Por exemplo, recorre à alusão rápida a rituais do Antigo Egito, cujo
esoterismo tem um valor popular garantido e cujo "mistério" sempre foi muito
apreciado. Do mesmo modo, ao dar em
seu relato um papel importante à Ordem
dos Templários -cujas relações movimentadas com a realeza medieval e o papado conhecemos, mas ainda ignoramos
em parte os motivos do ódio que eles
provocaram-, o autor conta com uma
vasta reserva de alegações tenebrosas e
sulfurosas. Sobretudo, ele convoca uma
série de símbolos que se prestam com
folga a todos os significados que desejarmos: símbolos numéricos, signos astrológicos, emblemas gráficos. Alguns desses símbolos são tão simples formalmente (por exemplo, a letra "v", assim como
o mesmo sinal invertido) que é inevitável
encontrá-los em toda parte. Assim, tudo
se parece com tudo. O autor ganha uma
incontestável comodidade interpretativa. O leitor, por sua vez, terá garantida
uma grande satisfação intelectual: a de
descobrir sem cessar aproximações imprevistas e compreender de repente verdades prodigiosas. Tudo se encaixa e se
ajusta muito bem. Tudo coincide. Os
chifres do carneiro remetem aos do diabo assim como às cornucópias de abundância. O ângulo formado pelo "v" evoca
tanto o cálice cristão quanto o ícone da
feminilidade.
Deve-se notar, nesse sentido, que um
trabalho engenhoso é exigido dos tradutores do livro, que devem inventar os
equivalentes necessários para todo tipo
de jogos de palavras, associações verbais
e anagramas. Não ousamos pensar nas
dificuldades enfrentadas pelos tradutores das edições em línguas que não utilizam caracteres latinos.
Dessa complexa mistura de verdades
históricas, antigas lendas, narrativas recentes e invenções atuais, certos leitores
terão vontade de rejeitar tudo como uma
confusão de fabulações, outros de tudo
aceitar como um novo evangelho. Entre
essas duas categorias de público se situa
o grupo, cujo número ninguém saberia
avaliar, de leitores capazes de separar as
coisas, isto é, apreciar a erudição do autor para o que é verídico e sua imaginação, assim como talvez seu humor, para
o que é falacioso. Aí talvez esteja o perigo
deste livro. O que ele contém de verificável está inextricavelmente misturado a
asserções incontroláveis. Como nos documentos esotéricos, em suma, a verdade está muito bem escondida. Assim como se dizia outrora das obras ousadas,
ele não deveria ser colocado em quaisquer mãos. Aparentemente, está conhecendo um destino contrário.
Não dramatizemos. "O Código Da
Vinci" é um livro acima de tudo simpático. É divertido. Não tem nenhuma pretensão literária, mas sua técnica narrativa é eficaz. Por sua construção em forma
de caça ao tesouro e jogo de pistas, tem as
qualidades de um excelente livro para
crianças. Sempre haverá tempo mais tarde, para elas, de examinar as coisas mais
de perto.
Enfim, só podemos apreciar a boa vontade quase militante que Dan Brown testemunha a favor da causa feminista. Ele
convida, de fato, a sonhar com o que poderia ter sido a história dos últimos 20 séculos se o cristianismo tivesse concebido
de outra forma o papel e o estatuto das
mulheres. No modo ambíguo que caracteriza todo o seu romance, ele celebra o
"feminino sagrado" com uma surpreendente mistura de seriedade e humor.
Jean Galard é ex-diretor cultural do Museu do
Louvre (Paris) e autor de "A Beleza do Gesto"
(Edusp).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
O Código Da Vinci
480 págs., R$ 39,00
de Dan Brown. Trad. Celina Cavalcante Falck-Cook. Ed. Sextante (r. Voluntários da Pátria, 45, sala 1.404, CEP 22270-000, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/
xx/21/ 2286-9944).
Texto Anterior: + livros: Piada de brasileiro Próximo Texto: Decifrando... Índice
|