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Decifrando o Código Da Vinci
Fabio Herrmann
especial para a Folha
O grande romance desvenda alguma dimensão da realidade. E
o pequeno, o best-seller divertido, algo também nos poderá
informar acerca do mundo em que vivemos? Diria que sim, que pode, mas a título de sintoma da realidade, não de reflexão, não de informação, mas enquanto
informante.
"O Código Da Vinci" é um tremendo
sucesso de público e tipicamente sintomático. O autor, Dan Brown, não perde
tempo com sutilezas psicológicas e introduz em poucas páginas o casal simpático
da aventura. Robert Langdon é um professor de simbologia religiosa da Universidade Harvard, agora na França -ao
que parece, já teve uma aventura anterior no Vaticano-, apresentado numa
conferência em certa Universidade
Americana de Paris como dono de uma
voz de barítono, que soa a "chocolate ao
ouvido das alunas", um "Harrison Ford
em Harris tweed". A mocinha chama-se
Sophie, é criptógrafa da polícia parisiense e neta do curador do Museu do Louvre, o qual, descobre-se depois, é também o "Grande Mestre do Priorado de
Sião". Jacques Saunière, presumivelmente o único personagem mais complexo e promissor, é contudo assassinado logo à página três, em plena Grande
Galeria. As 450 páginas seguintes estão
ocupadas por uma desenfreada gincana,
que mistura investigação do crime, fuga
da arrogante polícia francesa, fuga dos
bandidos -quem seriam? Não necessariamente a Igreja Católica, incriminada
putativamente-, solução de charadas
(em inglês) e caça ao tesouro, este nada
menos que o Santo Graal.
Nada de mais, à primeira vista. De James Bond a Indiana Jones a fórmula do
sucesso pouco mudou. Em "O Código
Da Vinci", os capítulos encolheram, as
cenas paralelas convergem mais depressa, a leitura proporciona alguma interatividade, desafiando o leitor a sacar os trocadilhos. A bem da verdade, como se diz,
sugerindo que a verdade, além de nua e
crua, é pobre também, devo confessar o
ridículo momento de orgulho que experimentei ao decifrar, em "in london lies a
knight a pope interred", o nome de Alexandre Pope onde "enterrado por um
papa" não fazia mesmo o menor sentido.
É claro que o "assustadoramente inteligente" com que é saudada a solução do
enigma uma vintena de capítulos depois
fez-me corar de vergonha retrospectiva.
Em compensação, o transparente Amon
e Ísis ("L'Isa", em italiano), para Mona
Lisa, não me proporcionou prazer nenhum, antes o vexame de quem suplica
interiormente "isto não, isto não por favor, ai! Isto sim", levando-me a querer
retrucar ao autor que o par de Ísis seria
antes Osíris, no caso, e não Amon. Detalhes. Jogando um videogame, não se pode ser demasiado exigente. O livro é superficial, mas diverte.
O segredo do sucesso é difícil de precisar. Best-sellers são como avalanches. A
condição predisponente mais ou menos
se conhece, porém, uma vez começadas,
engrossam por si mesmas, rolando a encosta da montanha e acumulando propaganda. O tema religião está na moda.
Oferece pelo menos uma interpretação
fácil para as últimas incursões imperiais.
História conspirativa da Igreja Católica,
cruzados e templários, heresias e heresiarcas, tudo isso tem sido popular por
décadas. Só de Umberto Eco, além de "O
Nome da Rosa", há "O Pêndulo de Foucault" e "Baudolino". O desmascaramento de uma conspiração para eliminar o "Sagrado Feminino", na pessoa da
Madalena, não tem como falhar em atrativos. Principalmente sendo ela o próprio Graal, o vaso sagrado, em que pese a
conotação, nem sequer blasfema, mas algo obscena. Levar-nos a passear por
obras de arte e referências culturais um
tanto óbvias, de Da Vinci a Newton, entra no espírito da fast food intelectual
sem grandes problemas. Quanto a tudo
dizer em inglês, isso é usual e internético.
Certo, um professor de simbologia religiosa que não entende francês e necessita
recorrer à constelação de Taurus para
traduzir "taureau" é muito pouco plausível. Primeiro, por óbvias exigências profissionais, em que línguas teria estudado
a Idade Média? Segundo, porque de
"taureau" (como se sabe, pronuncia-se
"torrô") para "taurus" a semelhança só
está na escrita, não na fala. Mas isso já
nos leva ao centro da questão, à realidade
cifrada.
A meu ver, o que há de verdadeiramente sintomático em "O Código Da Vinci" é
o rebaixamento do mistério a enigma.
Pondo as coisas em termos simples,
enigmas têm solução, enquanto mistérios não a têm. Indo de um a outro livro
de sucesso atual, mas de diferente envergadura, quando, no "Ensaio sobre a Lucidez", de Saramago (continuação do
"Ensaio sobre a Cegueira"), que, entre
muitas outras coisas, é uma deliciosa
piada de agente secreto português, o Comissário muda de lado ao recordar uma
frase -"Nascemos, e nesse momento é
como se tivéssemos firmado um pacto
para toda a vida, mas o dia pode chegar
em que nos perguntemos, Quem assinou
isto por mim"-, estamos diante do mistério do próprio nome, não como designação, mas como assinatura da existência. Não há resposta para tal mistério,
salvo a vida, salvo a ação e a morte conseqüente. Todavia, de "san graal" para
"sang real", de "Amon, L'Isa" para "Mona Lisa" e para outras dezenas de charadas de inspiração ainda mais rasa, a solução é clara, mata-se a charada, ou melhor, esta se suicida de vergonha.
A realidade como texto cifrado -e
muito mal cifrado no caso presente-
corresponde a uma visão do mundo em
franca difusão. Dir-se-ia que nos cansamos de lutar contra sermos enganados e
passamos a desejar o engano, a querer
dele participar ativamente. Afinal, um
texto cifrado é uma comunicação entre
dois especialistas, o que a cifrou e o que a
decifrou. No meio, estamos nós, os que
não compreendem a realidade cifrada.
As armas de destruição em massa que
Bush procura no Iraque estão, ao que
consta, estocadas entre os arbustos do
seu jardim; mas a hipótese terrorista é
suficiente para que se aceitem invasão,
assassínio e torturas. As promessas eleitorais não se vão cumprir, é notório, mas
circularam e voltarão a circular dentro
em pouco, dando seguimento ao processo de recompra de bilhetes corridos. O
crime da semana é solucionado, explicam-se os motivos inconscientes e as razões sociais; depois a solução é desmentida e o interesse morre. Não fazendo
mais sentido do que um papa na Inglaterra, decerto a realidade deve conter alguma mensagem cifrada. Resta-nos esperar que alguém a decifre.
Potencializando a suspeita de uma realidade cifrada da terra para os céus, não é
de estranhar que a religião correspondente decaia do mistério do humano para a hipótese conspirativa e, desta, à simples charada. Aliás, "O Código Da Vinci"
não versa sobre o cristianismo, fique descansado, mas sobre os projetos de terceirização corporativa da divindade. E, convenhamos, um professor de simbologia
religiosa guiado por uma criptógrafa policial constitui uma poderosa imagem de
nossa época, versão contemporânea do
"Cego Guiando Outros Cegos", do velho
Brueghel. Leia e constate.
Fabio Herrmann é professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e analista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São Paulo. É autor de
"A Infância de Adão" (ed. Casa do Psicólogo).
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