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Ponto de fuga
A volúpia do fim
Jorge Coli
especial par Folha
O poeta grego Konstantinos Kaváfis, que morreu em
1933, deixou uma página intitulada "À Espera dos Bárbaros" [em "Poemas", ed. Nova Fronteira]. Num império não nomeado, anuncia-se que os bárbaros se aproximam. Os cônsules e pretores vestem-se com as togas
mais finas e com as jóias mais ricas para deslumbrar os
invasores. Os senadores deixaram de legislar; não vale a
pena. O imperador se posta à porta da cidade, solene,
coroa na cabeça, quer ser o primeiro a recebê-los. De repente, uma inquietação. As pessoas se recolhem com ar
sombrio. O que teria ocorrido? "É que a noite caiu", responde alguém, "e os bárbaros não chegam. Pessoas vieram das fronteiras e dizem que não há bárbaros...". O
poema conclui: "E agora, que será de nós sem bárbaros?
Essa gente, apesar de tudo, era uma solução".
O filme "O Dia Depois de Amanhã", de Roland Emmerich, cria uma decadente sensação de saciedade um
pouco assim. A trama do pai buscando salvar o filho é
gasta, inerte, apenas um pretexto. Nesse pai e nesse filho, porém, há algo de resignado, de cansado. O jovem e
seus companheiros vão ser salvos, está claro, e isso não
parece importar muito. Políticos mostram-se mesquinhos e estúpidos, como sempre. A militância ecológica
é bem menos presente do que os maravilhosos estragos
provocados pela natureza, de beleza grandiosa.
Pela primeira vez num filme, o povo americano tem
que imigrar para países subdesenvolvidos. Há um desejo surdo: ah, como seria bom uma catástrofe universal
para fazer o mundo sair da estreiteza cruenta e descorçoada em que se encontra! Essa nova era glacial, apesar
de tudo, seria uma solução...
Psiu - "Kovadloff (...) é dos que procuram exprimir,
através das palavras, intuições obscuras e obsessivas",
escreveu Ernesto Sabato. Através, termo justo, já que algo se desenha por trás da transparência, clara ou embaçada, de suas frases. Algo que o leitor vislumbra, aproxima, captura quase, ou vê escapar.
A editora José Olympio publicou "O Silêncio Primordial", ensaios de Santiago Kovadloff, pensador argentino. O estilo é admirável e, a tradução, excelente. Kovadloff expõe o pressuposto silencioso por trás da poesia,
da psicanálise, da música, da matemática, da religião,
da pintura e do amor. Pode-se nem sempre estar de
acordo com alguns procedimentos de sua compreensão, mas não importa. O modo como isso é dito é o estimulante. Muito belo também.
Veja-se esta passagem sobre a carícia: "É em virtude
da sua constituição que o silêncio amoroso encontra na
carícia o meio adequado para a manifestação de sua
melhor eloqüência. A carícia se estende sobre a amada.
Na tranqüilidade inigualável de seu lento desdobramento podemos reconhecer que, com ela, se celebra
uma presença sem que se caia na cega ilusão possessiva.
(...) A carícia é a incomparável voz elementar do silêncio
amoroso: com ela se acata e exalta o que há de inalcançável na beleza da amada. Mediante a delicadeza incomparável de sua forma, a carícia desliza sobre a pele
sem confundir o que se brinda ao tato com o que se pode apreender".
Winners - "Tudo sobre o Oscar - uma Visão do Cinema
Sonoro Americano" (editora Zit) é livro grande, de 700
páginas. Sai publicado agora em segunda edição. Obra
brasileira de Fernando Albagli, erudito sem falhas e
amoroso do cinema, firma-se como verdadeira suma
de referências incontáveis. É preciso o investimento de
uma vida para conseguir resultado assim. Melhor do
que isso, só se saísse em CD-ROM, o que facilitaria em
muito as pesquisas e cruzamentos de dados.
Aquecimento - "Os Gênios da Pelota", dirigido por
Norman McLeod, com os irmãos Marx, mostra Harpo
que alimenta uma lareira com enormes pás de livros,
numa alegria anárquica e destrutora. Em "O Dia Depois
de Amanhã", os livros da Biblioteca Pública de Nova
York são também queimados para que um pequeno
grupo possa sobreviver ao frio extremo. A cultura vira
cinzas em benefício de necessidades primárias, para
que a humanidade possa renascer e novos futuros se desenhem. Salva-se, apenas, na melancolia, um exemplar
da Bíblia de Gutemberg.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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