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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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"MATRIX RELOADED" ESPELHA OS DILEMAS DA ESQUERDA ATUAL EM SUA LUTA CONTRA O SISTEMA

RESISTÊNCIA ENTRE QUATRo PAREDES

Slavoj Zizek

Existe algo de inerentemente ingênuo e estúpido em levar a sério as bases "filosóficas" da série "Matrix" e discutir as implicações delas. Está na cara que os irmãos Wachowski não são filósofos, mas apenas dois sujeitos que flertam superficialmente com alguns conceitos "pós-modernos" e new age e os exploram de maneira confusa. "Matrix" é um desses filmes que funcionam como uma espécie de teste de Rorschach, que coloca em movimento o processo universalizado de reconhecimento, como aquela célebre pintura de Deus que parece estar sempre olhando diretamente para você, não importa desde onde você olhe para ela -ou seja, praticamente todas as orientações parecem reconhecer-se nele. Meus amigos lacanianos me dizem que seus autores devem ter lido Lacan; os seguidores da Escola de Frankfurt enxergam em "Matrix" a incorporação extrapolada da "indústria cultural", a substância social alienada-concretizada (do capital) assumindo o poder diretamente, colonizando nossa própria vida interior, usando a nós como a fonte de energia; os seguidores das idéias new age enxergam especulações sobre como nosso mundo não passa de uma miragem gerada por uma mente global incorporada à web, e tudo isso sem falar na onipresença de Jean Baudrillard. A série "Matrix" remete à "República" de Platão: afinal, "Matrix" não repete exatamente o dispositivo da caverna de Platão (os seres humanos comuns como prisioneiros, amarrados com firmeza em seus assentos e forçados a assistir à encenação do que consideram, falsamente, ser a realidade -em suma, a posição assumida pelos próprios espectadores de cinema)?

Engodo filosófico
Assim, a busca pelo conteúdo filosófico de "Matrix" constitui um engodo, uma armadilha a ser evitada. As leituras pseudo-sofisticadas que projetam no filme as distinções filosóficas refinadas ou psicanalíticas conceituais são, de fato, muito inferiores à imersão ingênua que pude testemunhar quando assisti a "Matrix" num cinema da Eslovênia. Tive a oportunidade única de me sentar ao lado do espectador ideal do filme -um idiota. Um homem na casa dos 20 anos, quase 30, sentado à minha direita estava tão mergulhado no filme que a todo momento perturbava os outros espectadores, exclamando em voz alta coisas como: "Meu Deus, uau! Quer dizer que não existe realidade! Somos todos marionetes!". O que é interessante, sim, entretanto, é ler os filmes "Matrix" não como portadores de um discurso filosófico consistente, mas como intérpretes, por suas próprias inconsistências, dos antagonismos inerentes à difícil situação ideológica e social em que nos encontramos. O que é a Matrix, então? Simplesmente o que Lacan descreveu como "o grande Outro", a ordem simbólica virtual, a rede que estrutura a realidade para nós. Essa dimensão do "grande Outro" é a da alienação constitutiva do sujeito na ordem simbólica: o grande Outro mexe os pauzinhos; o sujeito não fala, mas "é falado" pela estrutura simbólica. Em outras palavras, esse "grande Outro" é o nome dado à substância social, a tudo aquilo devido ao qual o sujeito nunca chega a dominar plenamente os efeitos de seus atos, isto é, devido ao qual o resultado final de sua atividade é sempre algo distinto daquilo a que ele visou ou que previu. E as inconsistências da narrativa do filme espelham à perfeição as dificuldades que sentimos em romper as amarras da substância social. Quando Morpheus tenta explicar a Neo, ainda perplexo, o que é a Matrix, ele a vincula a uma falha na estrutura do universo: "É aquela sensação que você teve a vida inteira. Aquela sensação de que havia algo de errado no mundo. Você não sabe o que é, mas está ali, como uma lasca enfiada em sua cabeça, deixando você maluco".

"Falha do sistema"
Aqui o filme se depara com sua inconsistência máxima: a experiência da ausência/inconsistência/obstáculo supostamente deve ser testemunho do fato de que aquilo que vivenciamos como sendo a realidade é mentira. No entanto, perto do final do filme, Smith, o agente da Matrix, oferece uma explicação diferente, muito mais freudiana: "Você sabia que a primeira Matrix foi projetada para ser um mundo humano perfeito? Onde ninguém iria sofrer, todo o mundo viveria feliz? Foi um desastre. Ninguém aceitou o programa... Os seres humanos, como espécie, definem sua realidade por meio do sofrimento e da dor". Assim, a imperfeição de nosso mundo é ao mesmo tempo sinal de sua virtualidade e de sua realidade. Poderíamos afirmar, de fato, que o agente Smith (é bom lembrar que se trata não de um ser humano como outros, mas da incorporação virtual direta da própria Matrix, ou seja, do grande Outro) é alguém que representa a figura do analista dentro do universo do filme: a lição que ele ministra é que a vivência de um obstáculo insuperável é a condição positiva para que nós, humanos, possamos apreender algo como realidade -a realidade, em última análise, é aquilo que "resiste". Vinculada a essa inconsistência está o status ambíguo da libertação da humanidade anunciada por Neo na última cena. Em consequência de sua intervenção, ocorre na Matrix uma chamada "falha do sistema"; ao mesmo tempo, Neo se dirige às pessoas ainda presas dentro da Matrix como o Salvador que as ensinará a se libertarem das limitações da Matrix -elas poderão quebrar as leis físicas, dobrar metais, voar... Entretanto o problema é que todos esses "milagres" só se tornam possíveis se nos conservarmos "dentro" da realidade virtual mantida pela Matrix e apenas dobrarmos ou modificarmos suas regras: nossa condição "real" ainda é a de escravos da Matrix; estamos, por assim dizer, apenas ganhando poder adicional para modificar as regras que regem nossa prisão mental. O que dizer, então, da idéia de sair por completo da Matrix e ingressar na "realidade real" na qual somos criaturas miseráveis que habitam a superfície destruída da terra? Será a solução uma estratégia pós-moderna de "resistência", de "subverter" ou "deslocar" interminavelmente o sistema de poder ou uma tentativa mais radical de pôr fim a ele?

Sabor de coisa real
Recordemos outra cena memorável, na qual Neo precisa optar entre o comprimido vermelho ou azul. É a opção entre a Verdade ou o Prazer: ou o acordar traumático no Vermelho ou continuar na ilusão regulada pela Matrix. Ele escolhe a Verdade, contrastando com o personagem mais desprezível do filme, o informante/agente da Matrix entre os rebeldes, que, na cena memorável do diálogo com o agente Smith, pega com seu garfo um pedaço de carne vermelha e suculenta e fala: "Sei que isto não passa de ilusão visual, mas não me importa, porque tem sabor de coisa real". Em outras palavras, ele opta pelo princípio do prazer, que lhe diz que é preferível manter-se dentro da ilusão, mesmo sabendo que se trata de uma ilusão e nada mais.
Mas a escolha de Matrix não é tão simples assim: afinal, exatamente o que é que Neo vai oferecer à humanidade ao final do filme? Não um acordar diretamente no "deserto do real", mas um flutuar livre entre a multidão de universos virtuais: em lugar de ser simplesmente escravizado pela Matrix, podemos nos libertar dela, aprendendo a dobrar suas regras -podemos alterar as regras de nosso universo físico e, assim, aprender a voar livremente e a violar outras leis físicas. Em suma, a opção não se dá entre a verdade amarga e a ilusão prazerosa, mas entre os dois modos de ilusão; o traidor vive atrelado à ilusão de nossa "realidade", dominada e manipulada pela Matrix, enquanto Neo oferece à humanidade a experiência do universo como playground, no qual podemos jogar uma infinidade de jogos, passando de um para outro, reformulando as regras que fixam nossa experiência da realidade. De maneira adorniana, deveríamos afirmar que essas inconsistências constituem o momento de verdade do filme: elas assinalam os antagonismos de nossa experiência social capitalista posterior, antagonismos que dizem respeito a pares ontológicos básicos tais como realidade e dor (a realidade como aquilo que perturba o reinado do princípio do prazer), liberdade e sistema (a liberdade só é possível dentro do sistema que impede seu desenrolar pleno).


Tive a oportunidade única de me sentar ao lado do espectador ideal de "Matrix" -um idiota


Dois aspectos da perversão
Em última análise, porém, a força maior do filme pode ser localizada em nível diferente. Seu impacto singular reside não tanto em sua tese central (de que aquilo que vivenciamos como realidade é uma realidade virtual artificial gerada pela "Matrix", o megacomputador conectado diretamente às mentes de todos nós), mas em sua imagem central dos milhões de seres humanos levando uma vida claustrofóbica em berços repletos de água, mantidos vivos para que possam gerar a energia (eletricidade) que move a Matrix. Assim, quando (algumas das) pessoas "despertam" de sua imersão na realidade virtual controlada pela Matrix, esse despertar não é a abertura para dentro do espaço amplo da realidade externa, mas a primeira e assustadora tomada de consciência desse cárcere, dentro do qual cada um de nós é, de fato, não mais do que um organismo semelhante a um feto, imerso no fluido pré-natal. Essa passividade absoluta é a fantasia previamente executada que sustenta nossa experiência consciente como sujeitos ativos, autopostulados -ela é o máximo em termos de fantasia "perversa", a noção de que, em última análise, somos "instrumentos" da "jouissance" do Outro (da Matrix), tendo nossa substância vital sugada para fora como se fôssemos baterias. Isso nos conduz ao verdadeira enigma libidinoso: por que a Matrix precisa de energia humana? É evidente que a resposta puramente energética não faz sentido; a Matrix poderia facilmente ter encontrado outra e mais confiável fonte de energia, uma que não exigisse o arranjo extremamente complexo da realidade virtual coordenada para milhões de unidades humanas. A única resposta consistente é que a Matrix se nutre da "jouissance" humana -e aqui nos vemos de volta à tese lacaniana fundamental de que o próprio grande Outro, longe de ser uma máquina anônima, precisa receber um fluxo constante de "jouissance". E aí se encontra o insight correto de "Matrix", o filme: ao justapor os dois aspectos da perversão -por um lado, redução da realidade a um domínio virtual regido por regras arbitrárias que podem ser suspensas, e, por outro, a verdade oculta dessa liberdade: a redução do sujeito a uma passividade instrumentalizada absoluta. "Matrix Reloaded" propõe -ou, melhor dizendo, brinca com- uma série de maneiras de superar as inconsistências do primeiro filme da série. Entretanto, ao fazê-lo, se deixa emaranhar em inconsistências próprias, novas. O final do filme é aberto e não contém decisão, não apenas em termos narrativos, mas também no que diz respeito a sua visão subjacente do universo. O tom básico é de complicações e suspeitas adicionais que tornam problemática a ideologia simples e clara de libertação da Matrix que forma a base do primeiro filme.

Excesso de Matrix
Dúvidas são lançadas sobre as duas figuras-chave. São verdadeiras as visões de Morpheus ou será que ele é um louco paranóico que impõe suas alucinações aos outros? Neo tampouco sabe se pode confiar no Oráculo, a mulher que prevê o futuro: será que também ela o está manipulando com suas profecias? Será ela uma representante do lado bom da Matrix, em contraste com o agente Smith, que, em "Reloaded", se transforma num excesso da Matrix, um vírus ensandecido que se multiplica para evitar ser deletado? E o que dizer dos pronunciamentos crípticos do Arquiteto da Matrix, o redator de seu software, seu Deus? Ele avisa a Neo que ele está, na realidade, vivendo na sexta versão atualizada da Matrix. Em cada uma delas surgiu a figura de um salvador, mas suas tentativas de libertar a humanidade terminaram em catástrofes de grandes proporções. Será, então, que a rebelião de Neo, longe de constituir um fato único, não é mais do que parte de um ciclo maior de perturbação e restabelecimento da Ordem? Assim, ao final de "Matrix Reloaded" tudo é posto em dúvida; a questão não é apenas se uma revolução qualquer contra a Matrix poderá ou não cumprir o que pretende nem mesmo se precisa terminar numa orgia de destruição, mas se seu advento não terá sido previsto pela Matrix ou até mesmo planejado por ela. E será que mesmo aqueles que se libertam da Matrix têm a liberdade de fazer qualquer escolha? Será a solução, apesar disso, correr o risco da rebelião declarada, resignar-se a jogar os jogos locais de "resistência" -ao mesmo tempo em que permanece dentro da Matrix- ou até mesmo realizar uma colaboração interclasses com as forças "boas" da Matrix? É aqui que "Matrix Reloaded" termina: numa falha de "mapeamento cognitivo" que espelha à perfeição a sinuca em que se encontra a esquerda hoje e sua luta contra o sistema. Uma virada adicional é fornecida no final do filme, quando Neo magicamente faz com que as máquinas más, que lembram polvos, não ataquem os humanos, simplesmente erguendo sua mão. Como ele conseguiu essa proeza no "deserto do real", e não dentro da Matrix, onde, é claro, ele é capaz de operar maravilhas, congelar o fluxo do tempo, desafiar as leis da gravidade etc.? Será que essa inconsistência não-explicada aponta para a solução segundo a qual "tudo o que existe é gerado pela Matrix" e que não existe nenhuma realidade absoluta? Embora deva ser rejeitada a tentação pós-moderna de encontrar uma saída fácil dessa confusão, proclamando a existência de uma série infinita de realidades virtuais que se espelham umas nas outras, existe um insight correto nessa complicação da divisão simples e reta entre a "realidade real" e o universo gerado pela Matrix: mesmo que a luta transcorra na "realidade real", a luta-chave precisa ser vencida na Matrix, razão pela qual é preciso reingressar em seu universo fictício virtual. Se a luta tivesse se dado unicamente no "deserto do real", ela teria sido mais uma distopia entediante sobre os resquícios da humanidade combatendo máquinas malévolas. Formulando o problema nos termos do velho par marxista "infra-estrutura/ superestrutura", é preciso levar em conta a dualidade irredutível dos processos socioeconômicos materiais "objetivos" que ocorrem na realidade, de um lado, e do processo político-ideológico propriamente dito, por outro lado. E se o reino da política for inerentemente "estéril", um teatro de sombras, mas, apesar disso, crucial para a transformação da realidade? Assim, embora a economia seja o lugar real e a política um teatro de sombras, a luta principal deve ser travada nos campos da política e da ideologia.

Batalha no interior
Tome-se o caso da desintegração do comunismo no final dos anos 1980: embora o acontecimento principal tenha sido a perda real de poder dos comunistas sobre o Estado, a quebra crucial ocorreu num nível diferente -naqueles momentos mágicos em que, embora formalmente os comunistas continuassem no poder, as pessoas de repente perderam o medo e deixaram de levar a ameaça a sério, de modo que, mesmo que as batalhas "reais" com a política continuassem a acontecer, todo mundo sabia, de alguma maneira, que "o jogo tinha terminado".
Assim, o título de "Matrix Reloaded" é inteiramente apropriado: se a parte um tratou principalmente do impulso de escapar da Matrix, libertar-se de seu domínio, a parte dois deixa claro que a batalha precisa ser vencida no interior da Matrix -que é preciso retornar a ela.
Assim, os irmãos Wachowski elevaram conscientemente o valor da aposta em "Matrix Reloaded", colocando-nos frente a frente com todas as complicações e confusões do processo de libertação. Com isso, eles se meteram numa enrascada: o que eles têm pela frente agora é uma tarefa quase impossível. Para que a próxima parte da trilogia, "Matrix Revolutions", faça sentido e faça sucesso, terá que oferecer nada menos do que a resposta correta aos dilemas da política revolucionária hoje -um roteiro do ato político que a esquerda tão desesperadamente procura.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno e professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "O Mais Sublime dos Histéricos" (ed. Jorge Zahar). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.


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