São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003 |
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+ autores "MATRIX RELOADED" ESPELHA OS DILEMAS DA ESQUERDA ATUAL EM SUA LUTA CONTRA O SISTEMA RESISTÊNCIA ENTRE QUATRo PAREDES
Slavoj Zizek
Dois aspectos da perversão Em última análise, porém, a força maior do filme pode ser localizada em nível diferente. Seu impacto singular reside não tanto em sua tese central (de que aquilo que vivenciamos como realidade é uma realidade virtual artificial gerada pela "Matrix", o megacomputador conectado diretamente às mentes de todos nós), mas em sua imagem central dos milhões de seres humanos levando uma vida claustrofóbica em berços repletos de água, mantidos vivos para que possam gerar a energia (eletricidade) que move a Matrix. Assim, quando (algumas das) pessoas "despertam" de sua imersão na realidade virtual controlada pela Matrix, esse despertar não é a abertura para dentro do espaço amplo da realidade externa, mas a primeira e assustadora tomada de consciência desse cárcere, dentro do qual cada um de nós é, de fato, não mais do que um organismo semelhante a um feto, imerso no fluido pré-natal. Essa passividade absoluta é a fantasia previamente executada que sustenta nossa experiência consciente como sujeitos ativos, autopostulados -ela é o máximo em termos de fantasia "perversa", a noção de que, em última análise, somos "instrumentos" da "jouissance" do Outro (da Matrix), tendo nossa substância vital sugada para fora como se fôssemos baterias. Isso nos conduz ao verdadeira enigma libidinoso: por que a Matrix precisa de energia humana? É evidente que a resposta puramente energética não faz sentido; a Matrix poderia facilmente ter encontrado outra e mais confiável fonte de energia, uma que não exigisse o arranjo extremamente complexo da realidade virtual coordenada para milhões de unidades humanas. A única resposta consistente é que a Matrix se nutre da "jouissance" humana -e aqui nos vemos de volta à tese lacaniana fundamental de que o próprio grande Outro, longe de ser uma máquina anônima, precisa receber um fluxo constante de "jouissance". E aí se encontra o insight correto de "Matrix", o filme: ao justapor os dois aspectos da perversão -por um lado, redução da realidade a um domínio virtual regido por regras arbitrárias que podem ser suspensas, e, por outro, a verdade oculta dessa liberdade: a redução do sujeito a uma passividade instrumentalizada absoluta. "Matrix Reloaded" propõe -ou, melhor dizendo, brinca com- uma série de maneiras de superar as inconsistências do primeiro filme da série. Entretanto, ao fazê-lo, se deixa emaranhar em inconsistências próprias, novas. O final do filme é aberto e não contém decisão, não apenas em termos narrativos, mas também no que diz respeito a sua visão subjacente do universo. O tom básico é de complicações e suspeitas adicionais que tornam problemática a ideologia simples e clara de libertação da Matrix que forma a base do primeiro filme. Excesso de Matrix Dúvidas são lançadas sobre as duas figuras-chave. São verdadeiras as visões de Morpheus ou será que ele é um louco paranóico que impõe suas alucinações aos outros? Neo tampouco sabe se pode confiar no Oráculo, a mulher que prevê o futuro: será que também ela o está manipulando com suas profecias? Será ela uma representante do lado bom da Matrix, em contraste com o agente Smith, que, em "Reloaded", se transforma num excesso da Matrix, um vírus ensandecido que se multiplica para evitar ser deletado? E o que dizer dos pronunciamentos crípticos do Arquiteto da Matrix, o redator de seu software, seu Deus? Ele avisa a Neo que ele está, na realidade, vivendo na sexta versão atualizada da Matrix. Em cada uma delas surgiu a figura de um salvador, mas suas tentativas de libertar a humanidade terminaram em catástrofes de grandes proporções. Será, então, que a rebelião de Neo, longe de constituir um fato único, não é mais do que parte de um ciclo maior de perturbação e restabelecimento da Ordem? Assim, ao final de "Matrix Reloaded" tudo é posto em dúvida; a questão não é apenas se uma revolução qualquer contra a Matrix poderá ou não cumprir o que pretende nem mesmo se precisa terminar numa orgia de destruição, mas se seu advento não terá sido previsto pela Matrix ou até mesmo planejado por ela. E será que mesmo aqueles que se libertam da Matrix têm a liberdade de fazer qualquer escolha? Será a solução, apesar disso, correr o risco da rebelião declarada, resignar-se a jogar os jogos locais de "resistência" -ao mesmo tempo em que permanece dentro da Matrix- ou até mesmo realizar uma colaboração interclasses com as forças "boas" da Matrix? É aqui que "Matrix Reloaded" termina: numa falha de "mapeamento cognitivo" que espelha à perfeição a sinuca em que se encontra a esquerda hoje e sua luta contra o sistema. Uma virada adicional é fornecida no final do filme, quando Neo magicamente faz com que as máquinas más, que lembram polvos, não ataquem os humanos, simplesmente erguendo sua mão. Como ele conseguiu essa proeza no "deserto do real", e não dentro da Matrix, onde, é claro, ele é capaz de operar maravilhas, congelar o fluxo do tempo, desafiar as leis da gravidade etc.? Será que essa inconsistência não-explicada aponta para a solução segundo a qual "tudo o que existe é gerado pela Matrix" e que não existe nenhuma realidade absoluta? Embora deva ser rejeitada a tentação pós-moderna de encontrar uma saída fácil dessa confusão, proclamando a existência de uma série infinita de realidades virtuais que se espelham umas nas outras, existe um insight correto nessa complicação da divisão simples e reta entre a "realidade real" e o universo gerado pela Matrix: mesmo que a luta transcorra na "realidade real", a luta-chave precisa ser vencida na Matrix, razão pela qual é preciso reingressar em seu universo fictício virtual. Se a luta tivesse se dado unicamente no "deserto do real", ela teria sido mais uma distopia entediante sobre os resquícios da humanidade combatendo máquinas malévolas. Formulando o problema nos termos do velho par marxista "infra-estrutura/ superestrutura", é preciso levar em conta a dualidade irredutível dos processos socioeconômicos materiais "objetivos" que ocorrem na realidade, de um lado, e do processo político-ideológico propriamente dito, por outro lado. E se o reino da política for inerentemente "estéril", um teatro de sombras, mas, apesar disso, crucial para a transformação da realidade? Assim, embora a economia seja o lugar real e a política um teatro de sombras, a luta principal deve ser travada nos campos da política e da ideologia. Batalha no interior Tome-se o caso da desintegração do comunismo no final dos anos 1980: embora o acontecimento principal tenha sido a perda real de poder dos comunistas sobre o Estado, a quebra crucial ocorreu num nível diferente -naqueles momentos mágicos em que, embora formalmente os comunistas continuassem no poder, as pessoas de repente perderam o medo e deixaram de levar a ameaça a sério, de modo que, mesmo que as batalhas "reais" com a política continuassem a acontecer, todo mundo sabia, de alguma maneira, que "o jogo tinha terminado". Assim, o título de "Matrix Reloaded" é inteiramente apropriado: se a parte um tratou principalmente do impulso de escapar da Matrix, libertar-se de seu domínio, a parte dois deixa claro que a batalha precisa ser vencida no interior da Matrix -que é preciso retornar a ela. Assim, os irmãos Wachowski elevaram conscientemente o valor da aposta em "Matrix Reloaded", colocando-nos frente a frente com todas as complicações e confusões do processo de libertação. Com isso, eles se meteram numa enrascada: o que eles têm pela frente agora é uma tarefa quase impossível. Para que a próxima parte da trilogia, "Matrix Revolutions", faça sentido e faça sucesso, terá que oferecer nada menos do que a resposta correta aos dilemas da política revolucionária hoje -um roteiro do ato político que a esquerda tão desesperadamente procura. Slavoj Zizek é filósofo esloveno e professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "O Mais Sublime dos Histéricos" (ed. Jorge Zahar). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!. Tradução de Clara Allain. Texto Anterior: + autores: O instante decisivo forjado Próximo Texto: Ponto de fuga: Verde de raiva Índice |
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