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Ponto de fuga
Verde de raiva
Divulgação
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Cena do filme "Hulk", em cartaz em SP |
Jorge Coli
especial para a Folha
"Se os olhos pudessem matar", escrevia Machado de
Assis, "teriam suprido tudo". A raiva de Hulk não torna
os olhos acerados: ela cria um mostrengo violento, com
três metros de altura, cor xarope de menta. Mas são os
mesmos ódios internos que fervem. A verdadeira diferença é que Hulk possui uma natureza boa e suas cóleras são justas. Não é um super-herói, não age por escolhas éticas. Dentro dele há um impulso generoso, ignorado e combatido pelas forças repressoras da sociedade,
pelo Exército.
Nestes tempos em que os valores mais irredutíveis parecem refugiar-se no interior dos comportamentos individuais, a truculência de Hulk adquire significação
forte. Concentra uma impaciência dolorosa, mas, em
fim de contas, saudável, com o mundo de hoje.
Ang Lee sublinhou a tragédia, instaurada pela violência familiar. A chave psicanalítica pode parecer tentadora, mas ela logo se revela tacanha diante da complexidade do filme, que é a complexidade da arte. Há, em
"Hulk", uma ressonância cristã: a mente poderosa do
pai, em benefício da humanidade, cria um filho predestinado ao sacrifício. O Hulk de Ang Lee possui um caráter ascético, sem erotismo, ao contrário do de Lou Ferrigno. Não tem os desejos bestiais que pulsavam no
"King Kong", de Cooper e Schoedsack, em 1933, como
já notou a crítica. Mesmo seu alter ego, Bruce Banner,
surge esvaziado de sexualidade. No oposto de seu pai,
que encarna a maldade do conhecimento, Hulk, o trágico, é o inocente que não sabe. É puro furor imenso, contra a estupidez e a crueldade do mundo.
Uau - Só Hollywood contrataria um asiático sofisticado
para fazer um filme de arte de US$ 150 milhões a partir
de um herói de quadrinhos.
A idéia -"("Hulk') é um filme de arte de US$ 150 milhões"- foi formulada por Bernardo Krivochein, num
texto do site Zeta Filmes (www.zetafilmes.com.br). É
possivelmente a melhor crítica sobre o filme publicada
em português.
Safanões - Saiu em DVD, pela Columbia, "No Silêncio
da Noite" ("In a Lonely Place"), de Nicholas Ray, com
Humphrey Bogart e Glória Grahame (1950). É um antimelodrama, já que, nele, as dificuldades amorosas não
provêm de acidentes exteriores, mas daquilo com o que
os personagens são feitos. A história, por sinal, não tem
reviravoltas; só uma, no começo.
Bogart encarna Dixon Steele, roteirista de Hollywood
com inteligência bastante para ver de modo crítico e cínico o mundo à sua volta. Mas aí está: o cinismo é casca
frágil e cede diante de acessos descontrolados e brutais,
que terminam desencadeando situações críticas. Steele
é um Hulk intelectual e artístico, suas explosões são justificadas pelo temperamento imprevisto que o comum
dos mortais atribui aos artistas. Tudo no filme parece
secundário e paralelo, fora a intensidade nos afetos do
casal que se ama. Ela provoca um tropismo obsessivo
que se encontra muito além das banalidades psicológicas: a intensidade se faz essência, para além do real, para
além dos acidentes.
O DVD traz, em complemento, o trailer de época; curiosamente, a cena final que aparece ali não é a mesma
que está no filme. Há dois finais, portanto, um feliz, um
infeliz, e algo de mágico nessas duas possibilidades, como se as duas existissem ao mesmo tempo. É um acidente, sem dúvida, mas coerente com a metafísica onírica dos afetos que Ray era mestre em captar.
Passagem - "Il Cuore Altrove", filme de Pupi Avati,
apresentado em Cannes, encontra-se atualmente nas
salas italianas. Surge como uma espécie de deserto, vazio de coerência e de invenção, com, aqui e ali, uma sequência mais interessante. A trama pode lembrar Douglas Sirk, mas essa comparação o diminui ainda mais.
Não possui em nada o rigor e a lógica implacável do melodrama que pretende ser.
É difícil crer que Avati seja o mesmo diretor de "La
Casa dalle Finestre che Ridono" (1976), filme de terror
mítico, pulsando de inquietações surreais, legítimo herdeiro de Buñuel pelo seu clima, um Buñuel acometido
de paroxismos góticos. Foi restaurado há pouco, e editado em DVD, pela Fox.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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