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Livros
E a luz se fez
"O Espírito das Luzes" reavalia o Iluminismo sob o pano de fundo de questões como a União Européia e o islamismo
FRANKLIN DE MATTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Do século 18 aos dias
que correm, as Luzes sempre estiveram na mira de
seus adversários e,
por isso, é mais que oportuna
esta defesa apaixonada e crítica, assinada pelo ensaísta Tzvetan Todorov.
O que incomoda Todorov
não é a rejeição externa das Luzes, reiterada durante o século
20 por T.S. Eliot, Alexander
Soljenitsin e [o papa] João Paulo 2º e que condena os itens
fundamentais do seu programa: a autonomia, o antropocentrismo, a busca de um fundamento humano para a moral
e a política etc.
Mais temíveis são as "caricaturas" e os "desvios", feitos pelo inimigo que se apóia sobre a
herança ilustrada e, ao mesmo
tempo, a desfigura.
Para se prevenir contra ele, é
preciso separar a letra e o "espírito" das Luzes, que nem
sempre andam ao mesmo compasso.
Exemplo: certa vez, Diderot
definiu na "Enciclopédia" o
modelo do intelectual ilustrado: "Um filósofo que, pisoteando o preconceito, a tradição,
aquilo que é antigo, o consentimento universal, a autoridade,
numa palavra, tudo o que subjuga a multidão das inteligências, ousa pensar por si mesmo".
As Luzes não se cansam, porém, de louvar a Antigüidade
greco-latina e sabem muito
bem que, sem tradição, não há
cultura.
Paradoxo? De modo nenhum, basta aqui ir além da letra do texto: a tradição atacada
por Diderot é aquela que pretende se impor só por ser tradição, enquanto a outra se submete ao crivo do livre exame,
sendo desse modo reconhecida
pelos homens.
Já se vê que o melhor procedimento para distinguir letra e
"espírito" das Luzes consiste
em expor um princípio do pensamento ilustrado e buscar a
idéia que o limita, funcionando, assim, como uma espécie
de regulação.
Três princípios
São três os grandes princípios das Luzes: a autonomia, a
finalidade humana de nossos
atos e a universalidade.
A autonomia consiste em
preferir aquilo que se escolhe e
se decide por si mesmo, não o
que é imposto.
Trata-se de um processo que
comporta um momento crítico,
de emancipação, e um momento construtivo, a autonomia
propriamente dita.
Para isso, é preciso que o indivíduo disponha da completa
liberdade de examinar, questionar e criticar qualquer dogma ou instituição, que perdem
seu caráter sagrado.
A religião, que outrora tutelava os homens, torna-se uma
opção pessoal, o que supõe uma
atitude de tolerância e a defesa
da liberdade de consciência
(Voltaire dizia que, na Inglaterra, cada um ia para o céu pelo
caminho que bem entendia...).
Essa demanda de liberdade,
por sua vez, prolonga-se no domínio social, traduzindo-se
agora em liberdade de opinião,
expressão ou publicação.
A primeira autonomia conquistada é a do conhecimento,
que possui apenas duas fontes,
a razão e a experiência.
Para a Ilustração, o conhecimento liberta os homens, donde a crença na expansão da
ciência, a valorização da educação e de todas as formas de difusão do saber.
Aqui é preciso se precaver
contra o "desvio" cientificista
ou positivista, lembrando que
as Luzes jamais afirmaram a total transparência do mundo e
estimavam não apenas a ciência, mas também a política e a
arte, a pintura, a música, o romance e a autobiografia.
A exigência de autonomia
transforma igualmente as sociedades políticas, reafirmando
a separação entre o temporal e
o espiritual.
Em suas formulações mais
acabadas, gera dois princípios
que se complementam: a soberania do povo (todo poder emana do povo, nada é superior à
vontade geral) e a liberdade do
indivíduo diante de qualquer
poder estatal, legítimo ou ilegítimo, o que se garante pelo pluralismo e equilíbrio dos diferentes poderes.
Uma vez emancipadas a vontade dos indivíduos e a das comunidades, como evitar a tentação da auto-suficiência individual (o "desvio" do marquês
de Sade) ou a completa submissão à sociedade?
Fazendo intervir, também
aqui, os meios de regulação.
O primeiro sustenta a finalidade das ações humanas liberadas, que visam os outros homens, com os quais vivemos em
sociedade, cuja felicidade nesta
vida importa mais que a salvação na outra (a Ilustração é,
pois, um humanismo).
A segunda restrição consiste
em dizer que todos os homens
possuem "direitos humanos"
invioláveis, anteriores à sociedade, como o direito à vida ou à
integridade de seu corpo.
Pode-se perguntar agora: ao
limitar a liberdade pela exigência de universalidade, não nos
arriscamos a tomar o "desvio
universalista"?
A resposta é que a afirmação
da universalidade humana implica o interesse pelas múltiplas formas que pode adquirir a
civilização.
Montesquieu e Rousseau são
dois formidáveis "etnólogos",
que se debruçam sobre as histórias e as humanidades "locais". Vale o mesmo para a pluralidade no tempo: o passado
deixa de ser a encarnação de
um ideal eterno e se torna uma
sucessão de épocas históricas
que possuem coerência e valores próprios.
Merece um parágrafo à parte
outro "desvio", tomado pelos
melhores escritores das Luzes:
a crença no progresso linear e
ilimitado do gênero humano.
"Tornar-se melhor"
Mais uma vez, Todorov invoca Rousseau, que escreveu as
melhores páginas sobre o assunto.
Para o autor do "Discurso sobre a Desigualdade", o que distingue o homem não é a marcha
para o progresso, mas apenas a
perfectibilidade, "uma capacidade de se tornar melhor, assim como de melhorar o mundo, mas cujos efeitos não são
garantidos nem irreversíveis".
Além disso, Rousseau achava
que o progresso num domínio
podia custar a regressão no outro. É de uma espantosa atualidade seu diagnóstico segundo o
qual o desenvolvimento da
ciência e da técnica tem conduzido à servidão política.
Autonomia do indivíduo e da
sociedade, finalidade humana
de nossos atos, universalismo,
laicização, vontade geral, equilíbrio e independência dos poderes, invenção da história como relato dotado de sentido
imanente, invenção da arte, do
artista e da história da arte: alguém duvida que as Luzes sejam responsáveis por boa parte
de nossa identidade atual?
Diante das teocracias islâmicas de hoje, da base norte-americana de Guantánamo e das
ameaças à pesquisa sobre células-tronco, alguém duvida de
que precisem ser defendidas?
FRANKLIN DE MATTOS é professor no departamento de filosofia da USP e autor de "O Filósofo
e o Comediante - Ensaios sobre Literatura e Filosofia na Ilustração" (UFMG).
O ESPÍRITO DAS LUZES
Autor: Tzvetan Todorov
Tradução: Mônica Cristina Corrêa
Editora: Barcarolla (tel. 0/xx/11/
3814-4600)
Quanto: R$ 34 (160 págs.)
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