São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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UM FUNCIONÁRIO EXEMPLAR


COMO CHEFE-DE-GABINETE DE CAPANEMA, SOB O GOVERNO DE GETÚLIO VARGAS, DRUMMOND INFLUENCIARIA DECISIVAMENTE O GOSTO DO MINISTRO, COMO NO PROJETO DO PRIMEIRO EDIFÍCIO MODERNISTA DO PAÍS


Neste final de regime, examinemos por instantes a categoria que lhe serviu de bode expiatório: os funcionários públicos. Tome-se qualquer um deles em sua pura e simples condição burocrática: homens e mulheres de bem, mal remunerados, geralmente frustados, constrangidos pelo limitante cotidiano. Difícil imaginar que, entre o ponto a ser assinado, os feriados a serem conferidos, o chefe a ser contrariado e a verificação do contracheque lastimável, sobre tempo e emoção para praticar a melhor poesia, a prosa refinada, a crítica brilhante. Pois acontece. Difícil é a situação inversa: o poeta ou ficcionista que, além de grande autor, foi importante funcionário. Mesmo Mário de Andrade, com o seu sentimento de missão diante do patrimônio histórico, material ou imaterial, em carta a Paulo Duarte, de 17/12/39, dizia: "Minha vida de funcionário é relativamente amável, pois nem preciso ir à repartição e trabalho em casa". É aí que cabe lembrar o papel de Carlos Drummond de Andrade como funcionário público exemplar. Se olharmos o conjunto de suas atividades pela vida afora, porém, o espanto diminui. Cada entrega, cada dedicação, cada paixão vinha acompanhada de outra. Com a mão direita, fazia a melhor poesia brasileira. Com a esquerda ("gauche"), praticava a crônica, gênero efêmero, descartável como os jornais, polêmico e sedutor. Mineiro itabirano, muda-se para o Rio de Janeiro em 1934, e é com paixão que vai falar dessa cidade, das praias, das ruas, das demolições, dos habitantes, jovens ou velhos, surfistas ou homens públicos. Paixão outra, imediata, feita de aqui e agora, como é próprio das paixões adúlteras, despida do ar de saudade que circunda "boitemporalmente" a Minas de origem. O poeta vem para o Rio como chefe-de-gabinete de Gustavo Capanema (1900-1985), ministro de Educação e Saúde do Estado Novo getulista, e logo irá influenciar a vida da cidade. O primeiro grande projeto de Gustavo Capanema seria, para dar visibilidade à questão da educação e da saúde no Brasil, criar um espaço arquitetônico que se impusesse nacionalmente, abrigando em seu interior o que de melhor houvesse na produção artística brasileira. Surgirá, assim, o projeto do prédio do MEC, no centro do Rio, que, ao ser concluído, transforma-se no principal ícone do modernismo em cenário que até então lhe fora resistente. Dois momentos do longo processo de construção do prédio-monumento exemplificam a importância que teve o chefe-de-gabinete. A primeira é quando da decisão sobre que proposta arquitetônica escolher. Capanema instituíra um concurso de anteprojetos de que saiu vitorioso um trabalho de inspiração art déco, apresentado por Arquimedes Memória. O ministro, cercado por uma plêiade de assessores modernistas, teria ficado "desolado com o resultado do concurso".

Vinda de Le Corbusier
A conselho de Drummond, e percebendo que o concurso previa prêmio, mas não o vinculava à construção, decide-se por chamar Lúcio Costa para criar o prédio. Drummond, recorrendo inclusive aos conselhos de Mário de Andrade, é a maior influência sobre o "gosto" de Capanema. Lúcio Costa convence então o ministro, que convence Getúlio Vargas, a trazer ao Brasil o arquiteto Le Corbusier. É do traço rápido do pioneiro da arquitetura modernista na Europa que sai a idéia que será desenvolvida pela equipe, liderada por Lúcio Costa e completada por Oscar Niemeyer, Jorge Moreira, Afonso Reidy, Carlos Leão e Ernani Vasconcelos.
A segunda influência decisiva vai acontecer ao final da construção. Para a frente do prédio, Capanema desejava algo de grandioso e, como ninguém passa impune pelos regimes autoritários, pretendia colocar na entrada do prédio imensa escultura de cunho nacionalista: o "Homem Brasileiro".
Mas o que é o homem brasileiro? Que cara, altura, porte teria? Novamente Drummond interfere. Depois de consultas a antropólogos e outros estudiosos incumbidos de definir teoricamente como seria o tal "homem brasileiro", Capanema encomenda a grande estátua a Celso Antônio. Capanema quer um homem de perfil ariano. Celso acredita dever criar um mestiço sentado. Roquette-Pinto escreve ao ministro dizendo que jamais o homem brasileiro poderia ser representado sentado, mas sim em movimento.
Diante do impasse, Drummond suspende o trabalho. Tenta-se Ernesto de Fiori. Também não dá certo. Drummond pede a Mário de Andrade que consiga de Brecheret a criação do tal homem. Mário se reconhece incapaz de insistir na encomenda, e o artista, de criá-la. Enfim o edifício é inaugurado em 1945 sem a estátua do "Homem Brasileiro", impossível de ser representado. Na parte da frente do edifício, o conjunto "Monumento da Juventude", de Bruno Giorgio, dá conta do recado.
Em 1945, Drummond se afasta de Capanema e vai editar, com o líder comunista Luís Carlos Prestes, a "Tribuna Popular". É Rodrigo Mello Franco de Andrade quem o leva de volta, no mesmo ano, ao serviço público. No mesmo ano publica "Rosa do Povo", em que aparece, no emocionante "Noite na Repartição": "Escreve romances, relatórios, cartas de suicídio, exposição de motivos,/ Mas escreve. Não te rendas ao inimigo. Escreve memórias".

Beatriz Resende é professora da Escola de Teatro da Universidade do Rio de Janeiro e autora de "Apontamentos de Crítica Cultural" (Aeroplano), entre outros.


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