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+ narrativa
IDA A TUPÃ
Mauro Rasi
Quando íamos passar o fim de semana em Tupã, distante uns 200 e poucos quilômetros de
Bauru, todo mundo ia pra cama logo após o
jantar, pra acordar cedinho. Mal conseguia
dormir de excitação. Íamos ver tio Walter e tia Conceição e meus primos Neusa, Cidinha e Zé Roberto. Querem mais?
Às seis da manhã já estávamos na estrada. Papai pilotava o Gordini e mamãe puxava o coro, animadíssima.
-"Adeus Sarita, vou partir para a fronteira..."
Sua disposição era impressionante. Às seis da manhã
já estava com a corda toda. E, me vendo sonolento, pois
não havia dormido direito de tanta excitação, ordenava:
-"Canta, menino!"
Eu, praticamente dormindo, completava, de mau humor:
-"Vou levar minha boiada para vender lá na feira..."
Mamãe via um eucalipto na estrada e gritava:
-"Respira fundo, enche o pulmão."
Enchíamos o pulmão. Ela insistia:
-"Prende a respiração. Prende."
E não deixava a peteca cair. Quando ameaçava cair ela
logo puxava "Ronda", de Paulo Vanzolini, que instantaneamente virava um sambinha animado:
- "Se hoje eu rondo a cidade a te procurar, sem te encontrar, lá lá ri rá..."
Cantava tudo com alegria. Até "Assum Preto" tornava-se de uma alegria contagiante:
- "Furaram os óio, do assum preto, pra ele assim
cantá mior..."
Na sua interpretação o pobre pássaro ficava cego, mas
feliz. Mamãe não admitia infelicidade. Maysa em sua
boca virava uma Ivete Sangalo. Seu "Meu Mundo Caiu"
era visto com otimismo. Quem a ouvisse pensaria que o
mundo havia desabado de felicidade.
Perto de Marília, ou seja, na metade do caminho, era
hora de cantar o hit de Nora Ney, "Ninguém me ama,
ninguém me quer". Com alegria, se é que isso é possível.
Parecia que era tudo de mentirinha:
-"Fui como resto de bebida que você jogou fora..."
Mamãe não sentia nada do que cantava; era tudo da boca pra fora. Como em "Lama", do Lupicínio:
-"Se meu passado foi lama, hoje quem me difama
viveu na lama também...". Não havia rancor nem amargura. Era uma lama "limpa", uma lama do bem. Quando cantarolava "a vergonha é a herança maior que meu
pai me deixou" parecia até que o pai havia deixado um
seguro de um US$ 1 milhão e não algo de que se pudesse
envergonhar.
Seu repertório era praticamente de fossa, que ela metamorfoseava. As músicas entravam lagartas e saíam
borboletas. Ela sempre via o lado positivo das coisas.
Depressão lá em casa não se criava, era sinônimo de chilique ou faniquito. Tudo se curava com um bom banho
frio. E, se a depressão persistisse, vinha a ameaça:
-Dá uma enxada pra ele capinar o quintal que eu
quero ver se esse fricote não passa...
Mas às vezes acontecia uma tragédia, como sábado
passado. Papai foi matar formigas. Da última vez tinha
usado querosene e quase pôs fogo na casa. Dessa vez
usou formicida. Formicida Tatu. Só de ver aquela caveirinha entre duas tíbias estampada na latinha já suava
frio. A latinha ficava guardada na última prateleira do
armário do quintal, num lugar quase inacessível. Mas
eu achava que um dia não iria me conter e acabaria
abrindo a lata e experimentando um pouquinho. Deve
ter sido porque o primeiro morto que eu vi (devia ter
uns cinco anos) estava caído, descalço e sem camisa, no
portão do E.C. Noroeste. Ao lado do corpo havia uma
garrafa de Coca-Cola e a fatídica latinha.
Para encurtar a história, papai espalhou formicida pela casa, mas esqueceu de avisar o Bolinha, nosso cãozinho vira-lata, que foi lá e lambeu. E morreu.
Por isso estávamos indo para Tupã, para esquecer.
Nessa época meu universo ia de Bauru a Tupã. Eu me
perguntava: "O que será que tem depois de Tupã?". Mas
no íntimo eu já sabia a resposta. Depois de Tupã começava a fantasia.
Mauro Rasi é dramaturgo, autor de, entre outras peças, "O Crime do
Dr. Alvarenga" e "Alta Sociedade".
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