São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros "Sobre Ética e Psicanálise", de Maria Rita Kehl, investiga as relações entre alienação e responsabilidade A dupla face do código
Giovanna Bartucci
Recentemente lançado pela Companhia das Letras, "Sobre Ética e Psicanálise", de Maria Rita Kehl, é
destinado a todos aqueles que se
preocupam com a crise ética vivida pela
sociedade ocidental. Dando sequência à
série inspirada em "Sobre Ética e Economia", de Amartya Sen, ao qual se seguiu
"Sobre Ética e Imprensa", de Eugênio
Bucci, este terceiro volume também trata
de questões importantes no que se refere
à contemporaneidade. Assim é que a autora dedica-se, fundamentalmente, à explicitação do papel da psicanálise na desconstrução dos parâmetros que sustentavam uma ética implícita na tradição
pré-moderna. Soma-se a isso, então, a
sua reflexão acerca da contribuição da
psicanálise para a criação de novos vetores que orientem uma ética para a modernidade, uma vez que, "na modernidade, o sentido da vida não é dado por
nenhuma verdade transcendental que preceda a existência individual".
Os desenvolvimentos da autora reafirmam as relações intrínsecas entre psicanálise e ética. Ao tomar como fundamento a proposição lacaniana do "inconsciente como discurso do Outro", estabelece-se "uma relação necessária entre psicanálise e ética pelo fato de a psicanálise entender o homem diante do drama da liberdade e da alienação ao inconsciente". De fato, diante da evidência de que esse "Outro" é um lugar vazio de significação e intenção, uma abstração, um fato de linguagem, institui-se uma incompatibilidade entre a culpa neurótica e a ética: "Quem mais, além de mim, pode se responsabilizar por algo que, embora eu não controle, não posso deixar de admitir como parte de mim mesmo?". A responsabilidade, como solução de compromisso entre o sujeito e seu desejo, é o oposto da culpa neurótica. É possível compreender, então, por que a autora não despreza a demanda -ainda que atribua à mesma certo "mal-entendido"- de fazer da teoria psicanalítica uma visão de mundo: "A contribuição mais importante que a psicanálise pode oferecer para constituir um novo saber erótico é a insistência na castração como condição do desejo e do prazer", reafirma a autora. Não é à toa que a questão que se coloca a um analisando em final de análise é "a de como articular alienação e responsabilidade". Mas vale dizer que, se a criação de sentido para a existência é uma tarefa simbólica que se dá por meio da produção de discursos e narrativas sobre "o que a vida é" ou "o que a vida deve ser", uma tarefa coletiva "da qual cada sujeito participa com o seu grão de invenção", há que atentar para esta falta de "uma base discursiva que confira apoio e significado à impossibilidade de gozo". Assim é que, se a "pós-modernidade" é mesmo o lugar da ausência de garantias, se a globalização tem produzido o enfraquecimento de fronteiras, de distinções entre culturas, aliado a uma "mobilidade" econômica, geográfica e cultural, tem também produzido um contingente de excluídos cuja demanda por reconhecimento, talvez mais do que por inclusão, tem se tornado cada vez mais violenta. Entretanto, se, como observa o historiador Aldo Agosti, a globalização é inevitável, o caminho de expansão dos direitos constitui-se como o projeto que tem como função governá-la, regulamentá-la, "mitigando" seus piores aspectos. As organizações não-governamentais nacionais e internacionais tornam-se, por exemplo, o lócus no qual os direitos humanos encontram possibilidade de articulação. A voz do outro No entanto, no que se refere aos psicanalistas, entende-se que é no momento mesmo em que seu saber é interrogado por uma experiência-outra -e não ao contrário- que a psicanálise se constitui como "lugar" no qual a alteridade poderá se inscrever como tal. Não é à toa que, já em 1895, Freud pôs em evidência o papel desempenhado pelos seus pacientes na constituição da teoria e prática psicanalíticas -à insistência do fundador da psicanálise na busca da origem de um sintoma, Emmy von N. teria alertado Freud de que, afinal, a deixasse "contar o que tinha a contar". De fato, compartilho da idéia de Kehl de que "uma leitura canalha da descoberta psicanalítica diria que, se o inconsciente existe, tudo é permitido". Gosto de pensar, no entanto, que uma leitura ética da descoberta psicanalítica institui-se no momento em que a própria psicanálise não se permite tudo, toma a si como objeto de reflexão e, do bojo de sua insuficiência e incompletude, torna-se então apta a produzir "uma base discursiva que confira apoio e significado à impossibilidade do gozo". Giovanna Bartucci é psicanalista, autora de "Borges - A Realidade da Construção" e organizadora de, entre outros, "Psicanálise, Literatura e Estéticas de Subjetivação" (Imago). Sobre Ética e Psicanálise 208 págs., R$ 26,00 de Maria Rita Kehl. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3167-0801). Texto Anterior: O Freud de cabeceira de... Próximo Texto: + cultura: Crítica da filosofia desfocada Índice |
|