São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002 |
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+ cultura Psicanálise freudiana e psicologia analítica junguiana devem ser compreendidas como respostas diversas e não-excludentes à crise da modernidade Crítica da filosofia desfocada
Marco Heleno Barreto
Sempre que a filosofia se põe a refletir sobre algum objeto polêmico, espera-se de partida que ela
atenda à incontornável exigência
da honestidade intelectual, única garantia para a credibilidade e validade de sua
argumentação. Nem sempre os filósofos
profissionais mostram-se à altura de tal
exigência, expondo-se por vezes inadvertidamente ao predomínio de certas
paixões e incorrendo em juízos distorcidos sobre o objeto posto sob análise com
prejuízo tanto para o objeto quanto para
a própria análise, que se pretende filosófica, mas decai em ideologia, no pior sentido do termo. É o que acontece a Slavoj
Zizek em seu artigo "Luta de classes na
psicanálise", publicado na edição do
Mais! de 7 de julho passado.
O filósofo esloveno pretende elucidar
as raízes da diferença entre Freud e Jung
e, para tanto, acertadamente remete a
questão ao campo da reflexão sobre a
modernidade. De fato, tanto a psicanálise freudiana quanto a psicologia analítica junguiana devem ser compreendidas
como respostas diversas à crise da modernidade. Por isso mesmo, o segredo da
sua diferença deve ser buscado precisamente nas raízes, atos e figuras dessa
complexa trama que constitui a modernidade ocidental.
Todavia já aqui começa a aparecer a
fragilidade da argumentação de Zizek.
Desconsiderando a complexidade inegável do fenômeno da modernidade, ele a
identifica simplificada e implicitamente
a uma de suas correntes, a que, capitaneada pela reverência irrestrita à ciência
moderna, desemboca no materialismo,
definido pelo autor como "a afirmativa
plena da contingência radical de nosso
ser". Tal redução da modernidade a uma
de suas expressões compromete o alcance da análise proposta por Zizek.
Mais grave, porém, é a forma como ele
constrói seu argumento dentro desse horizonte previamente reduzido. Tratando
de uma polêmica explosiva dentro da
história da psicanálise, o autor assume a
releitura lacaniana de Freud para contrapô-la não a Jung, mas à apropriação deste pela "ideologia popular", em especial
por sua vertente "new age", que Zizek
identifica implicitamente como sendo a
revelação da verdadeira natureza do
pensamento de Jung.
Há aqui uma distorção fundamental.
Lembremos que o empreendimento decisivo de Lacan começa por um retorno a
Freud, diante das deturpações que o
pensamento do fundador da psicanálise
sofria nas mãos de seus muitos e heterogêneos descendentes. As conquistas de
uma tal fidelidade ao texto freudiano são
inegáveis. O mesmo privilégio não é concedido a Jung por Zizek. Ao homologar
junguianismo "new age" e psicologia
analítica ele omite e desconsidera o fato
de que essa apropriação representa na
verdade uma desvirtuação adocicada do
potencial crítico -portanto, moderno- que as idéias de Jung apresentam.
Assim, Zizek comete um equívoco grave e distorce o objeto que pretende analisar, perdendo de vista o núcleo da posição junguiana. Por exemplo: ele contrapõe a fórmula lacaniana do materialismo
"Deus é inconsciente" à sua inversão
junguianista "new age", "o inconsciente
é Deus". Se Zizek se desse ao trabalho de
ir ao texto de Jung, não encontraria ali referendo a nenhuma das duas posições.
Formado no ambiente neokantiano de
Basiléia (Suíça), Jung assimilou a teoria
do conhecimento da primeira Crítica
["Crítica da Razão Pura], de Immanuel
Kant" -aliás, um dos pontos de referência para a modernidade- e, em rigorosa
observância a ela, construiu sua psicologia. Por isso mesmo, em seu texto ele não pretende falar em momento nenhum de
"Deus", mas da imagem de Deus como
fenômeno psíquico, deixando em aberto,
por consciência lúcida dos limites epistemológicos traçados para sua psicologia,
a questão referente à existência ou inexistência de Deus -questão remetida
aos teólogos ou ao âmbito privado da fé
de cada um. Assim, as duas fórmulas
contrapostas por Zizek, bem como a
clássica profissão de fé do ateísmo
-"Deus não existe"-, situam-se fora
do âmbito da psicologia analítica.
Donde, por extensão, o equívoco grosseiro do filósofo esloveno ao afirmar que
"Jung promete a reconciliação entre a
ciência e a espiritualidade, oferecendo
uma espiritualidade fundamentada diretamente na pesquisa científica". Aqui fica manifesto que Zizek não analisa Jung
e sua psicologia, mas a sabedoria "new
age" que dele se apropria.
A mesma falha insanável em sua argumentação fica escancarada quando pretende demonstrar o suposto viés antimodernista de Jung através de James
Redfield e sua "Profecia Celestina", e não
por meio da leitura paciente do ensaio
sobre o princípio de sincronicidade, concepção de raízes não-modernas, mas
nem por isso "anti"-moderna, distinção que o horizonte restrito da análise de Zizek não consegue captar. Marco Heleno Barreto é psicólogo clínico e professor de filosofia no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus de Belo Horizonte. Texto Anterior: A dupla face do código Próximo Texto: Ponto de fuga - Jorge Coli: Bele Époque Índice |
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