São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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Ponto de fuga

Belle Époque

Jorge Coli
especial para a Folha

A exposição "Paris 1900" encerra-se no Rio de Janeiro. Deve ir, em seguida, a São Paulo e Porto Alegre. Reúne obras que pertencem ao museu parisiense do Petit Palais, centradas nas décadas de transição entre o século 19 e 20. Esse período foi de sofisticação cultural e fastígio econômico para a França, difícil de abarcar em sua totalidade. A mostra toma, então, um caminho atilado, privilegiando alguns núcleos, genéricos ou singulares. Explora, com rigor, as possibilidades daquele acervo. Em tempos de exposições enfáticas e tratadas grosso modo, ela destoa pela inteligência com que satisfaz os desígnios propostos para si mesma.
Parte do próprio edifício do Petit Palais, inserindo-o na exposição de 1900, para o qual ele foi concebido. Depois, reúne todo um conjunto sobre Sarah Bernhardt, ou antes, à volta do estupendo retrato que Clairin pintou da atriz, sinuosa e fluida, com um galgo a seus pés. Toma uma inflexão baudelairiana, ao entrar no quotidiano da metrópole e ao retraçar o universo feminino.
Uma parede enfileira quatro grandes retratos de senhoras, por Renoir, Cabanel, Baudry e Carrière, verdadeira lição de história da arte comparada. Vai buscar, ainda, o avesso do luxo, nas misérias retratadas pela pintura naturalista e pelas ilustrações. Envereda na espiritualidade simbolista, revelando, além de artistas mais conhecidos, o gênio do ceramista Carriès. Conclui centrando-se no marchand, colecionador e editor Vollard. Vieram vários retratos de Vollard, um deles feito por Cézanne, obra maior dentro da história da pintura.
Volume - O catálogo "Paris 1900 na Coleção do Petit Palais" (R$ 90, 324 páginas), é exemplar. Reproduz, em cores, todas as obras. Elas vêm acompanhadas por verbetes impecáveis e são precedidas por estudos gerais, ricos de informações precisas, que conduzem o leitor a interpretações mais amplas. É uma excelente ferramenta de estudo.
Labirinto - No Museu Nacional de Belas Artes do Rio, está a mostra "Espanha do Século 18: O Sonho da Razão". Como "Paris 1900", ela pretende sugerir uma atmosfera capaz de evocar as feições de uma época. O resultado, porém, é bem diverso. A mostra reúne, de fato, numerosos, objetos e obras de grande qualidade. Entre eles, estão quadros de Goya, gravuras suas em excelentes tiragens, e algumas das maravilhosas composições a óleo que concebeu para a Real Fabrica de Tapeçarias, cujas cores são translúcidas e felizes.
Há também pinturas de Francisco Bayeu, sogro e mentor de Goya, atestando a permanência de tradições barrocas, assim como um soberbo retrato por Mengs, indicando os caminhos da renovação neoclássica. Há algumas obras que demonstram a forte presença italiana no universo artístico espanhol do tempo, embora Tiepolo, que passou quase dez anos em Madri e lá morreu em 1770, não encontre, na mostra, o lugar que merece. Há objetos em porcelana, armas, roupas.
Tudo isso foi, porém, sacrificado a uma teatralização que esmaga as possibilidades efetivas de entendimento. Diante dos meios empregados, da grande qualidade do acervo apresentado, aflora um certo sabor de desperdício. O visitante fica meio perdido diante de efeitos dramáticos que terminam por anular os fios condutores. Se o título enuncia o tema goyesco do sonho da razão, os problemas da penetração iluminista na cultura espanhola não é de fato tratada.
Essa questão, fascinante e intrincada, que provocou algumas das grandes contradições presentes em Goya, foi o tema de uma exposição apresentada na Espanha e nos Estados Unidos, em 1989, cujo título era "Goya e o Espírito do Iluminismo". Tinha-se ali um verdadeiro trabalho de aprofundamento e as obras então reunidas vinham nutrir análises e debates. Foi um belo exemplo do que se pode fazer quando se busca, na arte, instrumentos para a compreensão da história e da cultura.

Despropósito - O catálogo da mostra "Espanha do Século 18: O Sonho da Razão" custa R$ 300.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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