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Livre do liberalismo ortodoxo e do populismo revolucionário, o Brasil é o país da região com mais chances de concretizar as mudanças necessárias
Decepção e esperança na América Latina
Alain Touraine
O 30º aniversário do golpe de Estado no Chile, da morte de Salvador Allende por resistir à
rendição, depois de ter enviado
sua mensagem de democracia ao povo
chileno quando a ditadura se abatia sobre ele, nos oferece a oportunidade não
apenas de reviver aqueles dias dramáticos e, indo além, a instauração ou a manutenção de ditaduras militares em todo
o Cone Sul, mas também de fazer o esforço maior para descobrir se, com o fim
das ditaduras e de uma interminável
transição para a democracia, a América
Latina pode, afinal, encontrar a fórmula
mágica que lhe permita combinar democracia política e crescimento econômico,
com a necessária transformação das estruturas sociais.
Tal reflexão impõe, de saída, a recusa
de duas visões políticas cujo fracasso foi
igualmente completo: o populismo revolucionário e o liberalismo não-igualitário. Depois do fim da União Soviética, de
Fidel Castro ter se reduzido a um mero
ditador caribenho e de o movimento
sandinista se degradar na corrupção, as
esperanças depositadas na guerrilha e no
pensamento revolucionário se esfumaram. O que era de esperar, já que sua tese
sobre a dependência afirmava que todo o
poder está fora do país e que, portanto,
as forças nacionais nada podiam contra
ele, atribuindo papel central a um apoio
externo, o do campo socialista, graças ao
qual a guerrilha, que sozinha era muito
fraca, apesar do seu poder de denúncia,
poderia levar a uma derrubada dos regimes dominados.
Como esse apoio externo deixou de
existir, restam apenas discursos revolucionários sem efeito revolucionário, atos
corajosos de militantes prontos a se sacrificar e alianças políticas cada vez mais
confusas.
Salvador Allende, por sua coragem, é a
imagem mais nobre desse populismo revolucionário que sucumbiu à crise econômica por ele desencadeada e que os
EUA souberam transformar em contra-revolução. Mas nada desse regime foi capaz de sobreviver. É por isso que o Chile
resiste tanto a lembrar esse passado, a
despeito da coragem dos militantes da
memória cuja ação, apesar de tudo, tem
uma repercussão muito menor que a dos
argentinos. São poucos, hoje em dia, os
que depositam esperanças em Hugo
Chávez [presidente da Venezuela]; até os
que se opõem aos adversários dele ainda
mais violentamente que ele próprio nada
esperam da sua logomaquia bolivariana.
Quanto às políticas liberais, que pouco
a pouco se espalharam pela América Latina, como pelo resto do mundo, não
trouxeram crescimento à região, mas aumentaram a desigualdade e a massa dos
excluídos.
O balanço desse longo período, em escala continental, é decepcionante. A
América Latina em seu conjunto não parece engajada em um desenvolvimento
auto-sustentável e menos ainda em um
desenvolvimento duradouro. Não que
não tenha havido algum sucesso, como o
que o México viveu ou mesmo o progresso real obtido pela social-democracia brasileira de Fernando Henrique Cardoso. Mas, em conjunto, a imagem é fosca, como também é fosca a da Europa
-que vê morrer o capitalismo renano
do Estado de Bem-Estar Social-, cada
vez mais atrasada em relação aos EUA
nos domínios mais avançados da ciência
e da tecnologia.
Desenvolvimento
Quais são, então,
as condições do que se pode chamar de
desenvolvimento, para retomar uma palavra que fizemos mal em abandonar?
Há pelo menos três, todas indispensáveis. E nos três casos a realidade está longe de corresponder às necessidades.
A primeira é a cidadania. Essa palavra é
mais clara que democracia. O desenvolvimento é sempre de um povo, de um
território com suas instituições e sua cultura, pois sem cidadania cada grupo se
fecha sobre si mesmo e a competição ou
os conflitos entre as partes do conjunto
acabam por exauri-lo, como se vê em
muitos países africanos. Desse ponto de
vista, alguns países da América Latina,
como o Chile e o Brasil, mas também o
México, apesar da rejeição dos indígenas, adquiriram uma consciência nacional e até um certo espírito de cidadania.
O segundo componente é o mais difícil
de possuir. Poderia ser chamado de classes sociais ou, mais claramente, coalizões
de forças definidas por seus conflitos. A
multiplicação dos grupos de interesse semeia a confusão. A polarização social, ao
contrário, é dinâmica, sobretudo porque
os campos opostos procuram elaborar
uma política global, que inclua a diretriz
do Estado, um projeto de educação etc.
O Chile foi praticamente o único país
que conheceu essa polarização que sempre faltou à Argentina, apesar do discurso das sucessivas CGTs [centrais sindicais]. Polarização que tampouco esteve
presente no México, onde o sindicalismo
foi há muito tempo incorporado ao aparelho de Estado, nem no Brasil.
O terceiro elemento é, pelo menos na
aparência, o mais fácil de possuir: a crença na razão, que permite superar o mundo paralisante dos particularismos e todas as formas de nostalgia do paraíso
perdido. Nisso a América Latina, em seu
conjunto, é fraca, como o demonstra o
estado de suas universidades e de seus
centros de pesquisa. Buenos Aires já brilhou intensamente; hoje, só o eixo São
Paulo-Campinas atinge um nível internacional, por mais que o México tenha
alguns pontos fortes, enquanto o Chile,
tão racional e laborioso, não conta com
instituições que permitam a seus pesquisadores mobilizar o político.
Tudo isso parece muito didático e distante da realidade, mas é justamente a
"realidade" -que está distante do desenvolvimento- que é insatisfatória. E
explicar tudo pela dominação estrangeira só leva à complacência ou à expectativa de uma crise milagrosa que destruiria
o adversário.
Mas não escrevo estas linhas para me
distanciar da realidade ou passear pela
utopia. Ao contrário, se o faço, é porque
o que era impensável se tornou possível.
O desencadeamento da cruzada americana, do triunfo de uma lógica de guerra
sobre uma lógica de globalização econômica, dá aos países do continente, sobretudo aos mais sólidos, uma autonomia
de ação e, consequentemente, uma consciência de suas responsabilidades e de
suas possibilidades que eles não tinham
antes. O Chile desperta aos poucos do
medo de si mesmo e de Pinochet; a Argentina acaba de romper com sua total
dependência do sistema financeiro internacional. O México, ao contrário, está
paralisado por sua impotência de criar
um sistema político.
Solução de FHC e Lula
Mas, para
além dos aspectos favoráveis ou desfavoráveis existentes na maioria dos países da
região, é o Brasil que tem condições para
encontrar uma solução. Nele, o populismo revolucionário e o liberalismo ortodoxo já não têm mais força. E existe um
amplo consenso favorável à solução preparada por Fernando Henrique Cardoso
e que Lula quer aplicar: finalmente aliar a
educação ao progresso social mediante
uma forte consciência nacional e a uma
vontade ativa de entrar na economia
mais moderna. Mas o Brasil só poderá
atingir esses objetivos se aumentar seu
nível de mobilização social e até de conflitividade.
Há muito tempo a conjuntura não era
tão favorável ao Brasil, ao Chile e a seus
parceiros, entre os quais a Argentina leva
a vantagem de apresentar um alto nível
de educação. Mas é preciso que a consciência não entrave a existência, que a
ideologia não recuse a realidade, que a
vontade coletiva se una ao calor dos conflitos e à confiança na produção, no investimento e no trabalho. É chegada a
hora do aumento da produção e da luta
maciça contra a miséria urbana. É preciso que por toda parte as vontades despertem e as mudanças se acelerem.
Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Rubia Prates Goldoni.
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