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Tradução integral de "O Desaparecido ou Amerika", romance inacabado de Franz Kafka, tematiza o indivíduo solitário em busca do sentido da existência
A IMENSA COLÔNIA PENAL
14.jan.2002 - Reuters/China Photo
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Turistas tiram fotos da escultura de gelo "Estátua da Liberdade Amedrontada", em memória dos atentados de 11 de Setembro, em Harbin (China) |
Marcus Mazzari
especial para a Folha
Na breve vida de Franz Kafka
(1883-1924), o ano de 1912 reveste-se de extraordinário significado. Na madrugada de 23
de setembro escreve, de um só jato, "O
Veredicto", considerado um divisor de
águas em sua produção literária, e nas
madrugadas entre 17 de novembro e 7 de
dezembro surge "A Metamorfose", um
dos textos mais célebres do século 20
(para Elias Canetti, "o maior feito da ficção na literatura ocidental"). No plano
pessoal recrudescem porém os conflitos
com o pai, o que leva o escritor, pressionado a assumir a supervisão de uma fábrica da família, a cogitar o suicídio.
Se o desfecho das novelas mencionadas é o aniquilamento dos "filhos" Georg
Bendemann e Gregor Samsa, o romance
iniciado igualmente em 1912 trai um desejo de evasão que também pode ser visto à luz da crise pessoal vivenciada pelo
escritor. "Amerika" é o título pelo qual
essa obra, editada em 1927 por Max
Brod, ficou conhecida, mas uma carta a
Felice Bauer (um conturbado relacionamento que começa em 1912) diz: "A história que estou escrevendo, concebida
todavia com vistas ao ilimitado, chama-se -para dar-lhe uma idéia provisória- "O Desaparecido" e se passa exclusivamente nos Estados Unidos da América".
Notas de rodapé e variantes
Dessa obra tínhamos até agora o primoroso
capítulo de abertura, "O Foguista", incluído no sétimo volume das traduções
de Kafka assinadas por Modesto Carone
(e publicadas pela Companhia das Letras). A tradução integral de Susana
Kampff Lages, também feita a partir da
edição crítica (1983) de J. Schillemeit,
traz em notas de rodapé as inserções de
Max Brod assim como variantes suprimidas pelo autor em seu manuscrito.
Como uma "imitação" de Dickens, caracterizou Kafka em seu diário a história
do jovem praguense Karl Rossmann,
que, expulso pelos pais por ter engravidado uma criada, avista, na cena de abertura, a Estátua da Liberdade empunhando uma espada -estranhamento que de
imediato marca as diferenças com todo o
realismo do século 19.
Enquanto o navio está atracando, Karl
envolve-se numa disputa entre o foguista
(a quem se apega como a uma figura paterna) e o maquinista-chefe. Em circunstâncias surpreendentes fica conhecendo,
ainda no navio, o seu tio Jakob, self-made man que, novo representante do pai,
o acolhe e livra da difícil condição de imigrante. Parece abrir-se ao jovem um
mundo de possibilidades ilimitadas, sob
a proteção do rico tio, proprietário de
"um negócio de intermediação [...] que
providenciava o fornecimento de todos
os produtos e matérias-primas para os
grandes cartéis industriais e para os cartéis entre si".
Banido da casa do tio por causa de uma
desobediência inconsciente, a próxima
etapa de Karl em Nova York faz a narrativa avançar na figuração clarividente do
moderno mundo capitalista, com o ritmo vertiginoso que ao indivíduo só concede o breve instante da troca de turno.
Trata-se do seu emprego como ascensorista no labiríntico "Hotel occidental",
cujas estruturas já prenunciam as hierarquias indevassáveis de magistrados e
funcionários dos romances posteriores,
os também inacabados "O Processo" e
"O Castelo". Uma duvidosa negligência
profissional acarreta porém a sua demissão e a partir daí Karl vivenciará suas
aventuras americanas ao lado dos imigrantes Robinson e Delamarche, nomes
que adensam simbolicamente o tema do
indivíduo solitário em sua marcha pelo
sentido da existência.
Proporções grotescas
Contudo, do
mesmo modo como as relações humanas anteriores (e também a "vassalagem" posterior sob as ordens de Brunelda, ex-cantora de proporções grotescas),
o contato com os dois imigrantes é marcado por equívocos e ciladas -tudo em
meio a uma paisagem urbana dominada
pelo funcionamento automatizado da
sociedade industrial, em meio a ruas
coalhadas de veículos que ora passam
em alta velocidade ("como se de um
ponto distante fosse despachado um número exato de automóveis que eram esperados em igual quantidade num outro ponto distante da direção oposta"), ora
se congestionam de tal maneira que aos
pedestres não resta senão atravessar a
rua "por dentro dos carros, como se
aquilo fosse uma passagem pública".
Quando o "american way of life" parece envolver definitivamente o jovem imigrante como uma imensa "colônia penal", o último fragmento do romance
descortina-lhe a possibilidade de engajar-se no ilimitado teatro de Oklahoma,
em que todos estão convidados a interpretar o papel da própria existência.
Mescla de Juízo Final e utopia socialista,
esse "theatrum mundi" fecha a narrativa
sugerindo o desaparecimento do herói
num horizonte otimista, que nunca mais
assomaria nas criações literárias do mestre de Praga.
Entre os "erros" cometidos por Kafka
em suas incursões noturnas (após o trabalho no escritório) pelo continente norte-americano está o topônimo Oklahama, que a tradutora preserva de modo
consequente, mas recuperando o "h"
(Theatro de Oklahama) que a grafia praguense retirava de "Theater". Visa assim a um efeito de estranhamento que o
leitor talvez venha a sentir apenas no
sentido em que poderá estranhar a opção da tradutora por uma coloquialidade
carregada, que nem sempre encontra
correspondência no tom do original:
"Deixar a mala dando sopa" ("frei liegen
lassen"), "alguém lá do hotel o enrolou"
("gelockt hat") são exemplos dessa tendência que não hesita em falar de "quebra-pau" ("Krawall", palavra originária dos tumultos de 1830 e 1848), do qual
aliás Karl sai com um galo "tremendo".
Opções discutíveis da tradução, assim
como talvez se devam acolher cum grano
salis considerações do posfácio que privilegiam em demasia (à custa da dimensão histórica tão cara a leituras dialéticas) um Kafka "mais metalinguístico e
metaliterário", comprometido com o
"movimento auto-referencial do texto",
"eventos semióticos", com forçadas
"ambiguidades da letra".
Estamos portanto muito distantes das
concepções que norteiam as traduções
de Carone (ou de um Herbert Caro em
relação a Thomas Mann), mas essa constatação não significa de modo algum
questionar a legitimidade da perspectiva
de Susana Lages, sobretudo porque esta
traz também observações elucidativas e
inovadoras, convidando-nos a reconhecer nessa recente edição do "Desaparecido" uma importante contribuição para a
recepção da obra kafkiana entre nós.
Marcus Mazzari é professor de teoria literária na
USP e autor de "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (Ateliê Editorial).
O Desaparecido ou Amerika
304 págs., R$ 43,00
de Franz Kafka. Tradução de Susana Kampff Lages. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP,
tel. 0/ xx/11/3816-6777).
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