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Grupo faz seminário com especialistas na obra do autor, entre eles Raymond Gay-Crosier, para preparar a montagem de "Os Justos", peça do francês sobre terrorismo
A 'LIÇÃO' DE CAMUS
Manuel da Costa Pinto
Colunista da Folha
Em 1949, Oswald de Andrade levou Albert Camus
a Iguape, no litoral de São Paulo, para assistir a
uma procissão religiosa. Mais tarde, o escritor
francês fundiria esse episódio ao de uma macumba que testemunhou no Rio de Janeiro em companhia
do ator Abdias do Nascimento, resultando daí o conto
"A Pedra Que Cresce".
Desde então é difícil dissociar o Brasil da obra de Camus, que encontrou aqui várias semelhanças com sua
Argélia natal, também um país coabitado por europeus
e africanos. A história desse vínculo ganha agora mais
um capítulo, com a realização de um seminário promovido entre os dias 6 e 9 de outubro, em SP, pelo grupo
teatral Ágora, que prepara a montagem de "Os Justos",
peça de Camus sobre o terrorismo (informações pelo
tel. 0/xx/11/3284-0290).
Além da presença do próprio Abdias do Nascimento
(que aos 89 anos falará de seu encontro com Camus) e
de críticos como o francês Jean Yves Guérin e o argentino Horacio González, o seminário terá a participação
de Raymond Gay-Crosier, professor da Universidade
da Flórida e organizador da obra completa de Camus
para a coleção Pléiade, da editora Gallimard. Ele fala, a
seguir, de alguns temas que percorrem o pensamento
do escritor.
Qual a importância do Brasil na obra de Camus?
A viagem de Camus à América do Sul aconteceu sob
circunstâncias físicas e morais difíceis, mas deixou
marcas importantes. Depois de uma travessia que o
levou de navio ao Rio de Janeiro, ele visitou Recife,
Salvador, São Paulo, Porto Alegre, Buenos Aires,
Santiago e Montevidéu. No seu "Diário de Viagem",
Camus compara a desenvoltura dos corpos nas
praias brasileiras à da Argélia de sua juventude. Outra lembrança preciosa que ele levou do Brasil foi a
de uma viagem a Iguape, experiência da qual extraiu
um texto intitulado "A Pedra Que Cresce", que faria
parte do volume de contos "O Exílio e o Reino".
Existe uma "estética da revolta" em Camus?
Essa expressão aparece várias vezes nos "Carnets" de
Camus. É importante entender que absurdo e revolta são termos complementares desde o lançamento
de "O Mito de Sísifo" (seu "ensaio sobre o absurdo",
de 1942). A ausência de sentido que conduz àquilo
que chamamos de "ficção do absurdo" (como, por
exemplo, "O Estrangeiro") é apenas um ponto de
partida, pois essa ficção deve ser vista como uma
tentativa de dar sentido àquilo que não o tem, de dar
uma forma ao disforme. Essa tentativa, consciente
de sua insuficiência, é um gesto de recusa, uma revolta contra o absurdo que ela tenta negar. Podemos
dizer que a criação artística, tal como Camus a concebe, por exemplo, em "O Homem Revoltado", é
uma negação paradoxalmente afirmativa, um dos
axiomas da estética camusiana.
É esse o tema de seu livro "Albert Camus - Paradigmas da
Ironia. Revolta e Afirmação Negativa"?
O livro reúne uma dúzia de artigos ligados pelo tema
da "negação afirmativa". Esse aparente oxímoro é
um conceito de base e também uma estratégia criativa. O aspecto paradoxal do pensamento camusiano,
reforçado pela clareza exemplar de sua expressão,
me fascinaram e me levaram a relacioná-lo com a
ironia. Lembremos o que Camus diz em seus "Carnets": "Toda a minha obra é irônica".
Não se pode portanto dissociar a ética de Camus de sua
escrita?
Os valores humanos -os únicos que ele aceita-
são fundados na experiência pessoal. É por isso que
Camus deriva seus valores do comportamento que
pôde observar nos códigos das ruas e do esporte (sobretudo no futebol, que ele adorava) ou, num plano
cultural, no trabalho em equipe, principalmente no
teatro. Fundador do Théâtre du Travail (depois
Théâtre de l'Équipe), na Argel dos anos 30, Camus
sempre foi da opinião de que o teatro é a família do
espírito, pois ele admirava a função igualitária dessa
arte carnal.
Nos seus notáveis editoriais para o jornal "Combat",
ele tentou apaixonadamente dar à política um fundamento moral, não no sentido de uma moral normativa que repousa sobre princípios abstratos, mas
de uma moral vivida, concreta. Dentro de um mesmo espírito, as "lições" que podemos extrair de
obras tão díspares como "O Estrangeiro", "A Peste"
e "A Queda" são contraditórias apenas na aparência.
Pois, justamente, o objetivo não é fornecer ao leitor
receitas morais, mas incitá-lo à reação, ao engajamento em sua leitura revoltada, à formulação de seu
próprio julgamento.
Mais de 50 anos depois da ruptura entre Sartre e Camus,
qual a atualidade dessa polêmica? Houve um vencedor?
Essa polêmica fez correr muita tinta até nossos dias.
Ela tem importância apenas para a história das
idéias, ou melhor, das ideologias da metade do século passado. Parafraseando o famoso título de um dos
textos de Camus, "Nem Vítimas nem Verdugos", eu
seria tentado a dizer que essa polêmica não teve nem
vencedor nem vencido.
À pergunta "quem teve razão?" é preciso acrescentar: "razão de quê?". No plano formal e profissional,
Sartre, professor e ex-aluno da École Normale Supérieure, tinha a tarefa fácil de provar que era melhor
filósofo do que Camus. Mas, colocando a questão em
termos da prioridade conferida pelos círculos intelectuais dos anos 50 e 60 à luta pelo domínio ideológico, os "nouveaux philosophes" dos anos 70 acabaram retornando a Camus, que nunca deixou de repetir que não era um filósofo, mas um pensador, e
que era necessário pensar por imagens.
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