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O crítico literário Antoine Compagnon fala sobre a modernidade e antimodernidade do autor francês, tema de congresso que começa amanhã em São Paulo
O BOM DIABO BARTHES
do colunista da Folha
O autor de ensaios como "O Grau Zero da Escrita" e "S/Z" (no quais a literatura é descrita como uma complexa rede de signos refratários a
determinações subjetivas ou sociais) lia Alexandre Dumas na cama e se emocionava com a morte
das personagens de Proust e Tolstói. O contemporâneo
dos movimentos artísticos e intelectuais mais importantes da França do pós-guerra encontrava seu maior
prazer em clássicos como Pascal e Chateaubriand.
São essas ambiguidades -ou, em se tratando do autor de "A Aventura Semiológica", talvez fosse o caso de
dizer: essa polissemia- que fazem de Roland Barthes
uma espécie de metáfora da própria literatura, com
suas verdades provisórias, sua proliferação de sentidos,
suas reviravoltas. E é justamente esse "Barthes Moderno e Antimoderno" o tema da conferência do crítico
Antoine Compagnon, que abre amanhã, às 19h, o colóquio "Roland Barthes - O Saber com Sabor", que vai até
quarta-feira no Centro Universitário Maria Antonia.
Promovido pelo Instituto de Estudos Avançados da
USP (informações pelo tel. 0/xx/11/ 3091-3919), o colóquio é organizado pela ensaísta Leyla Perrone-Moisés e
terá a presença de outros especialistas na obra do crítico
francês, como Philippe Roger e Françoise Gaillard [no
dia 3, uma versão do colóquio acontece na Universidade Federal Fluminense, RJ, tel. 0/xx/21/2618-3376].
Leia, a seguir, a entrevista concedida ao Mais! por
Compagnon.
(Manuel da Costa Pinto)
Quais são os traços de modernidade e antimodernidade
em Barthes (tema de sua conferência em São Paulo)?
Barthes foi o "compagnon de route" das vanguardas, da revista "Théâtre Populaire", do "nouveau roman", do grupo "Tel Quel". Mas, desde 1971, ele já
dizia: "Minha proposta teórica é estar na retaguarda
da vanguarda". E, em 1980, ele terminou seu último
curso no Collège de France retomando a palavra de
ordem de Verdi em 1870 - "voltemo-nos para o
passado: será um progresso"-, pois, como ele
acrescentava, "a vanguarda pode errar". Há portanto um Barthes moderno: brechtiano nos anos 50, estruturalista nos anos 60, textualista nos anos 70. Mas
Barthes também resistia ao vanguardismo. Seu último curso no Collège de France foi profundamente
marcado por Pascal, Chateaubriand e Proust. E um
de seus primeiros artigos, em 1944, tinha como título
"Prazer nos Clássicos".
Podemos extrair um "método" da obra de Barthes, um
método independente de sua escrita?
Barthes metodista? Não, não o creio. Porém alguns
métodos ou doutrinas o marcaram. Ele reivindicava
o materialismo dialético na época de seu interesse
por Brecht. Saussure foi uma referência que ele nunca renegou. Mas foi Nietzsche que se impôs mais durante seus últimos anos: o Nietzsche de Deleuze.
Com Nietzsche, ele opõe a cultura ao método, ou seja, uma força que anima, um "fantasma", como ele
disse em sua aula inaugural no Collège de France: há
um fantasma diferente na origem de cada livro de
Barthes. A cultura no lugar do método; isso significa
também que Barthes era antes de tudo um grande
leitor.
A idéia barthesiana da "autarcia" -ou autonomia da literatura em relação ao mundo- ainda é válida?
Se queremos ser coerentes, devemos escolher entre
duas coisas: ou a literatura é autônoma, é combinação de palavras e frases, ou então a literatura é referencial, fala do mundo, revela a intenção mais ou
menos profunda de seu autor. Mas nós somos coerentes? Há alguns séculos estamos habituados à doutrina da "verdade dupla".
Barthes era teórico da literatura durante o dia e lia
Alexandre Dumas na cama, antes de dormir. Em
"Em Busca do Tempo Perdido", ele se emocionava
com a morte da avó; em "Guerra e Paz", com a morte
do velho príncipe Bolkonsky. Ele sabia que os romances também falam sobre nós.
Mais de 20 anos depois da morte de Barthes, ainda falamos do autor, do estilo, da literatura como mimesis ou representação (conceitos que teriam sido suplantados
pela obra do ensaísta). A permanência desses temas seria uma forma de "regressão da leitura", de incapacidade de perceber a literatura como um território à parte da
linguagem?
Por que falar de regressão? Barthes recorria a uma
bela imagem quando alguém o provocava sobre seus
"recuos" (como ele dizia para evitar a palavra "regressão"): a imagem da espiral, que ele tomava emprestada de Vico. Ela faz com que o mesmo retorne,
mas depois de uma curva espiralada: o mesmo em
um outro lugar, ou seja, um outro. Nós atravessamos
a teoria; portanto, quando voltamos a falar do autor,
da representação, do estilo, falamos disso de uma
outra maneira. A teoria nos desembruteceu. É sua
virtude. A teoria não é uma doutrina, não é um método, mas, como dizia Barthes com Nietzsche e Deleuze, uma cultura.
O que é "o demônio da teoria" (título de seu livro lançado
no Brasil pela editora da UFMG)?
O demônio da teoria é um pouco como o demônio
de Sócrates tal qual o entendia Baudelaire: um demônio que, em lugar de nos conduzir como um anjo
da guarda, em lugar de nos fazer calar, nos incita, nos
faz falar, falar em excesso. De repente, a teoria, cuja
virtude está na sua faculdade de eliminar as idéias
feitas sobre a literatura, na sua força de negação, se
transforma em doutrina positiva. A literatura não fala do mundo, fala apenas de si mesma: vá dizer isso
às pessoas no metrô! Mas o demônio da teoria também é Barthes, que se serviu da teoria, que brincou
com ela, que a atravessou como um bom diabo.
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