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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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O crítico literário Antoine Compagnon fala sobre a modernidade e antimodernidade do autor francês, tema de congresso que começa amanhã em São Paulo

O BOM DIABO BARTHES

do colunista da Folha

O autor de ensaios como "O Grau Zero da Escrita" e "S/Z" (no quais a literatura é descrita como uma complexa rede de signos refratários a determinações subjetivas ou sociais) lia Alexandre Dumas na cama e se emocionava com a morte das personagens de Proust e Tolstói. O contemporâneo dos movimentos artísticos e intelectuais mais importantes da França do pós-guerra encontrava seu maior prazer em clássicos como Pascal e Chateaubriand.
São essas ambiguidades -ou, em se tratando do autor de "A Aventura Semiológica", talvez fosse o caso de dizer: essa polissemia- que fazem de Roland Barthes uma espécie de metáfora da própria literatura, com suas verdades provisórias, sua proliferação de sentidos, suas reviravoltas. E é justamente esse "Barthes Moderno e Antimoderno" o tema da conferência do crítico Antoine Compagnon, que abre amanhã, às 19h, o colóquio "Roland Barthes - O Saber com Sabor", que vai até quarta-feira no Centro Universitário Maria Antonia.
Promovido pelo Instituto de Estudos Avançados da USP (informações pelo tel. 0/xx/11/ 3091-3919), o colóquio é organizado pela ensaísta Leyla Perrone-Moisés e terá a presença de outros especialistas na obra do crítico francês, como Philippe Roger e Françoise Gaillard [no dia 3, uma versão do colóquio acontece na Universidade Federal Fluminense, RJ, tel. 0/xx/21/2618-3376].
Leia, a seguir, a entrevista concedida ao Mais! por Compagnon. (Manuel da Costa Pinto)

Quais são os traços de modernidade e antimodernidade em Barthes (tema de sua conferência em São Paulo)?
Barthes foi o "compagnon de route" das vanguardas, da revista "Théâtre Populaire", do "nouveau roman", do grupo "Tel Quel". Mas, desde 1971, ele já dizia: "Minha proposta teórica é estar na retaguarda da vanguarda". E, em 1980, ele terminou seu último curso no Collège de France retomando a palavra de ordem de Verdi em 1870 - "voltemo-nos para o passado: será um progresso"-, pois, como ele acrescentava, "a vanguarda pode errar". Há portanto um Barthes moderno: brechtiano nos anos 50, estruturalista nos anos 60, textualista nos anos 70. Mas Barthes também resistia ao vanguardismo. Seu último curso no Collège de France foi profundamente marcado por Pascal, Chateaubriand e Proust. E um de seus primeiros artigos, em 1944, tinha como título "Prazer nos Clássicos".
Podemos extrair um "método" da obra de Barthes, um método independente de sua escrita?
Barthes metodista? Não, não o creio. Porém alguns métodos ou doutrinas o marcaram. Ele reivindicava o materialismo dialético na época de seu interesse por Brecht. Saussure foi uma referência que ele nunca renegou. Mas foi Nietzsche que se impôs mais durante seus últimos anos: o Nietzsche de Deleuze. Com Nietzsche, ele opõe a cultura ao método, ou seja, uma força que anima, um "fantasma", como ele disse em sua aula inaugural no Collège de France: há um fantasma diferente na origem de cada livro de Barthes. A cultura no lugar do método; isso significa também que Barthes era antes de tudo um grande leitor.
A idéia barthesiana da "autarcia" -ou autonomia da literatura em relação ao mundo- ainda é válida?
Se queremos ser coerentes, devemos escolher entre duas coisas: ou a literatura é autônoma, é combinação de palavras e frases, ou então a literatura é referencial, fala do mundo, revela a intenção mais ou menos profunda de seu autor. Mas nós somos coerentes? Há alguns séculos estamos habituados à doutrina da "verdade dupla". Barthes era teórico da literatura durante o dia e lia Alexandre Dumas na cama, antes de dormir. Em "Em Busca do Tempo Perdido", ele se emocionava com a morte da avó; em "Guerra e Paz", com a morte do velho príncipe Bolkonsky. Ele sabia que os romances também falam sobre nós.
Mais de 20 anos depois da morte de Barthes, ainda falamos do autor, do estilo, da literatura como mimesis ou representação (conceitos que teriam sido suplantados pela obra do ensaísta). A permanência desses temas seria uma forma de "regressão da leitura", de incapacidade de perceber a literatura como um território à parte da linguagem?
Por que falar de regressão? Barthes recorria a uma bela imagem quando alguém o provocava sobre seus "recuos" (como ele dizia para evitar a palavra "regressão"): a imagem da espiral, que ele tomava emprestada de Vico. Ela faz com que o mesmo retorne, mas depois de uma curva espiralada: o mesmo em um outro lugar, ou seja, um outro. Nós atravessamos a teoria; portanto, quando voltamos a falar do autor, da representação, do estilo, falamos disso de uma outra maneira. A teoria nos desembruteceu. É sua virtude. A teoria não é uma doutrina, não é um método, mas, como dizia Barthes com Nietzsche e Deleuze, uma cultura.
O que é "o demônio da teoria" (título de seu livro lançado no Brasil pela editora da UFMG)?
O demônio da teoria é um pouco como o demônio de Sócrates tal qual o entendia Baudelaire: um demônio que, em lugar de nos conduzir como um anjo da guarda, em lugar de nos fazer calar, nos incita, nos faz falar, falar em excesso. De repente, a teoria, cuja virtude está na sua faculdade de eliminar as idéias feitas sobre a literatura, na sua força de negação, se transforma em doutrina positiva. A literatura não fala do mundo, fala apenas de si mesma: vá dizer isso às pessoas no metrô! Mas o demônio da teoria também é Barthes, que se serviu da teoria, que brincou com ela, que a atravessou como um bom diabo.

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