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Ponto de fuga
O céu dos vendedores
O cotidiano, realista, reduz-se a um substrato de pequenas proporções. Ele está imerso num mundo de memórias, de ilusões, de esperanças patéticas, de sentimentos difusos e insatisfeitos. Mundo de atmosfera espessa, que tem uma translucidez de aquário. "A Morte
do Caixeiro-Viajante", de Arthur Miller, é uma denúncia do sonho americano, tal como ele se configurava naqueles anos do pós-guerra. Contudo angústias mais
amplas e eternas tomam a peça. Encontram-se no cerne
do texto.
Sua atual montagem, por Felipe Hirsch, veio do Rio
para São Paulo. É uma versão, por assim dizer, menos
"corpórea". A tradução de Flávio Rangel deixa leve e
modesto um estilo cujo original às vezes é perturbado
por um esforço poético laborioso. Os cenários, que permitem assinalar, sem confusão, o lugar do "real", da
memória e do imaginário, exalam uma espiritualidade
misteriosa, desgarrada do concreto.
Os personagens são de carne e osso, vulneráveis e dolorosos, mas neles também há uma redução física, uma
perda de carnalidade. Nesse sentido, Marco Nanini, no
papel de Willy Loman, é o oposto de Brian Dennehy,
tão visceral na reprise da peça que a Broadway propôs
quatro anos atrás. Os outros atores, a começar por Juliana Carneiro da Cunha, são também admiráveis. Situados para além de qualquer psicologismo mecânico, os
personagens em crise vivem uma grandeza trágica, acima da vida que os acorrenta.
Edicole - Como no Brasil, as bancas de jornal italianas
são cheias de DVDs, com preço menor que os das lojas.
Há algumas jóias. "Fermo Posta", de Tinto Brass (1995),
é uma delas. O filme apresenta oito episódios supostamente originados em cartas escritas por fãs, que enviam
ao diretor seus devaneios eróticos. O final é grotesco:
Brass, de bigode postiço e ridículo, aparece como um
mestre-de-cerimônias de circo em meio a mulheres
sem roupas. Ouvem-se barridos, e a montagem sugere
que seu pênis é uma tromba de elefante.
Esse achincalhamento de um surrealismo a la Fellini
não impõe seu tom ao resto, feito de voyeurismo sincero e elegante. No primeiro episódio, à distância um do
outro, dois casais transam. Há uma troca de olhares entre a mulher de um e o homem do outro: uma terceira
cena amorosa surge, assim, invisível, mas presente. Ou
ainda: diante da escrivaninha do diretor, uma jovem,
nua, passa por um teste. Brass apenas joga uma moeda
no chão, e a moça demonstra que há várias maneiras
ótimas de se abaixar para catá-la.
Ainda nas bancas italianas encontra-se uma pequena
maravilha: "Quando Alice Ruppe lo Specchio", de Lucio Fulci. Com baixíssimo orçamento, ironizando os
acessórios mal-feitos, as maquiagens aproximativas,
mostra-se um híbrido estranho de film noir, de horror e
de comédia.
Esqueleto - "Piratas do Caribe" traz a lição de que mais
é menos, ou, como declarou Rohmer, de que o cinema é
uma arte da recusa, da eliminação. Gore Verbinski dirige os piratas. Ele sabe criar climas estranhos e inquietantes. Sua obra precedente, "O Chamado" ("The
Ring", 2002), desdobrava episódios de tom fantasmagórico. Ocorre, porém, que "O Chamado" é um remake
de "Ringu" 1 (1998) e 2 (1999), de Hideo Nakata, filme
de poucos recursos, mas feito de estupenda invenção,
rigorosa e tensa. Em "Piratas do Caribe" os custosos
efeitos especiais servem para prolongar combates que
se repetem, intermináveis, mal alinhavados numa história esfarrapada. A tecnologia quer substituir roteiro
decente, coerência narrativa, convicção das cenas, e
destrói o que poderia haver ali de cinema. Resta Johnny
Depp, numa performance irresistível que mistura donaire amaneirado e imundície fedorenta.
Mentiras - A verdade da arte não é a verdade da vida, é
bom lembrar sempre. Inverossímil, a prisão russa de
"Hell" (2003), filme dirigido por Ringo Lam, com Van
Damme. Com tintas homoeróticas e sadomasoquistas,
ela se resume a uma arena de combates, onde todo
mundo fala inglês. Sua verdadeira verdade, porém, é a
do cinema, e nisso é muito mais autêntica do que o pretenso realismo de um "Carandiru".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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