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Dono de características contraditórias e avesso a grupos e correntes, autor de "Cultura e Política" e "Orientalismo" se consolida como exemplo de pensador errante
EDWARD SAID, UM INTELECTUAL FORA DO LUGAR
por Leyla Perrone-Moisés
A autobiografia de Edward W.
Said, publicada em 1999, se intitula "Out of Place" [Fora de Lugar]. Said é, de fato, um caso à
parte, não apenas por sua biografia, mas
principalmente por ser um pensador independente de grupos e correntes. Ser
difícil de situar já é uma primeira razão
para que dele desconfiem. De um intelectual engajado, o que se pede é que seu
lugar de palavra seja definido e estável
com relação aos contextos que discute
(não por acaso os ensaios de Sartre se
abrigam sob o título de "Situações").
A mídia, assim como a polícia política,
gosta de definir os intelectuais e escritores de modo sucinto. Mas toda apresentação rápida de Said é parcialmente falsa.
Vejamos alguns exemplos: "Edward W.
Said é um intelectual norte-americano".
Sim, ele é cidadão americano desde a juventude e é professor da Universidade
Columbia há quatro décadas. Mas também se pode dizer dele (e se diz): "Edward W. Said é um palestino exilado em
Nova York". Sim, ele nasceu em Jerusalém quando essa cidade ainda pertencia
à Palestina, teve de sair de lá quando foi
criado o Estado de Israel; mas sua situação nada tem em comum com a dos exilados políticos ou com a dos emigrantes
carentes de recursos materiais.
Sua família emigrou "voluntariamente" e seu pai fez fortuna nos Estados Unidos. Edward estudou nas melhores escolas inglesas do Egito e, depois, na Universidade Harvard. Ora, os sociólogos têm
dificuldades em lidar com um sujeito
que não pode ser classificado por origem
social, capital escolar e capital econômico. Um intelectual rico também é algo
que desgosta a certa militância esquerdista, mesmo que o indigitado não seja
pessoalmente culpado de sua riqueza.
Como personagem, o que ele acaba
sendo mesmo sem querer, Said reúne características contraditórias. A fortuna de
sua família e sua brilhante carreira intelectual são contrabalançadas, para os
adeptos da vitimologia, por uma leucemia com a qual ele luta desde 1991 (os sociólogos diriam: um estigma).
Preconceitos
Outra maneira de o
"perdoar" consiste, nos comentários
norte-americanos a seu respeito, em falar de sua "tremenda" capacidade de trabalho: livros, artigos, conferências e entrevistas aos borbotões. Também é ressaltada sua civilidade: "Urbano e sofisticado, Edward W. Said é, por muitos aspectos, o nova-iorquino quintessencial"
("The Progressive Magazine", novembro de 2001). Algo que surpreende e quase espanta é o fato de ele ser também pianista e musicólogo. Mas, apesar dessas
"atenuantes", seu lugar indefinido incomoda. Seria curioso reunir os comentários norte-americanos acerca de Said e
mostrar neles, como ele mesmo fez com
os textos literários, os preconceitos subjacentes aos discursos.
É justamente pelas peculiaridades de
sua existência que ele conhece tão bem a
condição de exilado, a qual dá título aos
ensaios reunidos em "Reflexões sobre o
Exílio". A condição de exilado, diz Said,
"é terrível de experienciar, e sua tristeza
essencial jamais pode ser superada". Entretanto o exílio foi voluntário e inspirador para muitos intelectuais e escritores
dos dois últimos séculos. Segundo Adorno, a casa própria, depois dos horrores
da Segunda Guerra, tornou-se uma mercadoria descartável, e o exílio é uma forma de fugir ao "mundo administrado".
Referindo-se aos tempos atuais, George
Steiner observa que, em nossa "civilização quase de barbárie", convém que os
escritores sejam seres "sem casa e errantes entre as línguas". Ambos os autores
são referências de Said -o qual, por sua
vez, é o exemplo perfeito do intelectual
errante.
Said é defensor da causa palestina desde 1967. Suas reflexões sobre a questão se
espalham por toda a sua obra, mas estão
particularmente sintetizadas em outro livro também publicado agora entre nós:
"Cultura e Política". Como militante da
causa palestina, ele é odiado por muitos
de seus compatriotas (americanos) conservadores e sionistas. Já teve seu escritório incendiado, seus familiares e ele mesmo recebem constantes ameaças de
morte, e enfrentou uma campanha para
que a Universidade Columbia o demitisse (o que não ocorreu). Mas, como ele
condena o terrorismo -rompeu há
muito com Arafat e a OLP [Organização
pela Libertação da Palestina] e defende
posições absolutamente laicas e antifundamentalistas-, também é criticado
por intelectuais árabes.
Mobilidade de enunciação
Aijaz
Ahmad, por exemplo, contestou o uso
que Said faz da primeira pessoa do plural, que, segundo o crítico, é ambíguo e
oportunista: "Qualquer leitura atenta do
conjunto de sua obra mostraria como ele
emprega estrategicamente palavras como "we" e "us" [nós] para referir, em contextos variados, palestinos, intelectuais
do Terceiro Mundo, acadêmicos em geral, humanistas, árabes, árabe-americanos e cidadãos americanos em geral"
("In Theory", ed. Verso, 1992).
Acontece que essa mobilidade de
enunciação é não apenas autorizada por
sua múltipla identidade cultural, mas é
também reivindicada por Said como um
modo legítimo de ser cidadão de muitas
pátrias e de nenhuma, modo de ser conquistado por sua biografia e adequado a
uma mundialização que ele deseja humanista e pacífica.
A identidade é encarada por ele como
um estorvo e um perigo. O nacionalismo, por exemplo, que ele define como "a
filosofia da identidade transformada numa paixão coletivamente organizada", é
necessário num primeiro tempo das nações, mas deve ser em seguida atenuado
"para que a identidade saia em campo
aberto e assuma seu lugar entre outras
identidades humanas".
"Arriscar a identidade"
Suas considerações sobre o nacionalismo cultural
são exemplares: "Fazer com que toda
educação ou apenas parte dela seja subserviente a esse objetivo é limitar os horizontes humanos, sem justificativa intelectual ou mesmo política. Ao supor que
os fins da educação são mais bem servidos se nos concentrarmos principalmente em nossa própria condição de separados, em nossa identidade étnica,
nossa cultura e nossas tradições, nos colocamos ironicamente no lugar subalterno e inferior que a teoria racial do século
19 nos atribuiu e assim deixamos de
compartilhar as riquezas gerais da cultura humana".
E suas observações sobre a universidade decorrem do mesmo princípio. O
modelo de liberdade acadêmica, para
ele, deve ser o migrante ou viajante: "Deveríamos considerar o conhecimento algo pelo qual devemos arriscar a identidade e então pensar na liberdade acadêmica como um convite para desistir da
identidade, na esperança de compreender e talvez até assumir mais de uma".
Com seu livro "Orientalismo" [Companhia das Letras], de 1979, ele antecipou toda uma corrente dos estudos culturais norte-americanos e depois mundiais, os estudos pós-coloniais. Ao estudar e demonstrar o modo como o Oriente aparece nas obras literárias do século
19 e início do 20, Said pôs a nu toda a
odiosa ideologia do imperialismo britânico e europeu em geral. Mas só pôde escrever esse livro brilhante porque estava
munido da artilharia conceitual que adquiriu nas escolas inglesas e americanas,
assim como no vasto conhecimento que
tinha da literatura, das artes e da filosofia
ocidentais. Sua enunciação segura, mas
tranquila, contrasta assim, flagrantemente, com a impostação frequentemente raivosa, simplificadora e demagógica de boa parte da produção teórico-crítica pós-colonial subsequente, pouco
ciosa de fundamentar, com um saber
que exige tempo, paciência e competência, afirmações que mais se aparentam
aos manifestos e panfletos do que às
obras de reflexão.
Conciliar antinomias
A característica mais conflituosa de Said consiste
exatamente na junção de uma teoria crítica ocidental, eurocêntrica em seus
princípios iluministas, com uma postura
política anticolonial. Essa antinomia,
que está na própria base dos estudos
pós-coloniais, o faz declarar que o epíteto "humanista" provoca nele um sentimento misto de afeição e repulsa. Numa
entrevista recente, ele declarou que seu
maior problema intelectual era o de conciliar o conhecimento e o humanismo.
Como efeito positivo, esse conflito confere à sua escrita uma inquietação permanente, uma ausência de arrogância
decorrente da saudável tendência a encarar os problemas de vários ângulos.
Finalmente, talvez a maior originalidade desse intelectual compromissado seja
o fato de ele pertencer a uma área de saber cada vez menos reconhecida e prestigiada: a dos estudos literários.
Foi estudando obras de autores ocidentais como Conrad, Kipling, Defoe,
Loti, Mann e de não-ocidentais como
Mahfouz, Idriss, Naipaul, Tayib Salih,
Kanafani e uma infinidade de outros escritores da literatura migrante que Said
constituiu não apenas a sua ampla visão
do mundo, mas também a sua concepção de militância política. Podemos apenas lamentar que ele saiba pouco da literatura e da teoria latino-americanas, mas
ninguém pode conhecer tudo, e o que ele
conhece já é muito.
A disciplina de que Said é titular, a literatura comparada, é uma decorrência do
projeto romântico da "Weltliteratur"
concebida por Goethe e, naturalmente,
tributária de uma ideologia eurocêntrica. Os grandes inspiradores teóricos de
Said, nessa disciplina, são os eruditos
Curtius e Auerbach. Goethe concebia a
literatura mundial como uma sinfonia;
Said, intelectual de um mundo completamente transformado pelas grandes
guerras, pelas viagens e migrações, pela
globalização econômica e pela cultura
massificada, prefere falar em contraponto. No terreno literário, a "mundialidade" é vista por ele como uma noção útil.
Estabelecer relações entre obras e, através delas, entre os homens é uma maneira de "ampliar o contexto" e "fazer com
que as culturas se alimentem umas às
outras".
Formas certeiras
Esses truísmos
humanistas, que correm sempre o risco
de cair na retórica vazia, adquirem, na
ensaística de Said, formas incisivas e certeiras. Como literário que é, ele desconfia
da linguagem. Com relação ao conflito
israelo-palestino, ele propõe o abandono
de palavras desgastadas como "diálogo"
e "paz" e sua substituição por "coexistência", "igualdade", "autodeterminação", "cidadania", "direitos". E, contrariamente aos "culturalistas", que usam
os textos literários apenas como comprovações de suas teses acusatórias ou
laudatórias, Said nunca perde de vista a
especificidade dos estudos literários. E
não cai na armadilha dos engajamentos
nacionais-populares tão frequentes entre os terceiro-mundistas. Seu projeto
não é o de exaltar obras, autores, etnias
ou nações particulares, reivindicando,
para os excluídos, lugares de honra no
cânone hegemônico. Seu procedimento
é o de colocar em relação e avaliar em pé
de igualdade obras das mais diversas
procedências.
Vale a pena citá-lo em extenso: "Quando se ligam obras entre si, elas são tiradas
do esquecimento e da posição secundária à qual por todos os tipos de motivos
políticos e ideológicos foram condenadas anteriormente. Portanto o que estou
propondo é o oposto do separatismo e
também o reverso do exclusivismo. É somente por meio do escrutínio dessas
obras enquanto literatura, como estilo,
como prazer e iluminação, que elas podem ser, por assim dizer, recolhidas e
mantidas. De outro modo, serão consideradas apenas espécimes etnográficos
informativos, apropriados para a atenção limitada de especialistas da área [...].
Uma grande parte da recente especulação teórica propôs que as obras de literatura são completamente determinadas
por sua situação e que os próprios leitores estão totalmente determinados em
suas reações por suas respectivas situações culturais, a tal ponto que nenhum
valor, nenhuma leitura, nenhuma interpretação podem constituir algo além do
mero reflexo de algum interesse imediato. Todas as leituras e toda a escrita são
reduzidas a uma emanação histórica
pressuposta".
Said recusa tanto o determinismo historicista quanto "a despreocupação etérea da crítica pós-axiológica" da chamada pós-modernidade. É na busca do
compromisso entre o reconhecimento
dos condicionamentos históricos e geográficos da obra literária e a avaliação estética com pressupostos universalistas
que Said traça seu difícil percurso. Enquanto o mundo carecer de justiça e de
beleza, a literatura tem uma função
maior do que a de doutrinar ou distrair, e
leitores humanistas como Said são indispensáveis.
Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP e autora de, entre outros, "Altas Literaturas" e "Inútil Poesia" (Companhia das Letras).
Cultura e Política
160 págs., R$ 29,00
de Edward Said. Org. Emir Sader. Trad. Luiz Bernardo Pericás. Boitempo (r. Euclides de Andrade, 27, CEP 05030-030, SP, tel. 0/xx/ 11/3872-6869).
Reflexões sobre o Exílio e Outros Ensaios
352 págs., R$ 39,50
de Edward Said. Org. de Milton Hatoum. Trad. de Pedro Maia Soares. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/ xx/11/3707-3500).
Out of Place
336 págs., US$ 14,00
de Edward Said. Vintage Books (EUA).
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