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São Paulo, domingo, 29 de junho de 2003

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Em "Os Dez Amigos de Freud", o crítico Sergio Paulo Rouanet investiga as motivações ideológicas e inconscientes de uma lista de dez "bons livros" feita pelo psicanalista austríaco e que incluía autores como Rudyard Kipling, Émile Zola e Mark Twain

SELEÇÃO DE PRECURSORES

Associated Press - 29.nov.2001/Ferdinand Schmutzer/Westlicht
Sigmund Freud (1856-1939) em foto de 1926 tirada pelo artista vienense Ferdinand Schmutzer


Em novembro de 1906, Freud recebeu de seu amigo Hugo Heller o pedido para indicar "dez bons livros". Heller era um livreiro e editor que frequentava as reuniões da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, antecessora da Sociedade Psicanalítica de Viena, e que na época ainda se compunha de 20 ou 30 pessoas que se encontravam no consultório de Freud para discutir as fascinantes teorias de seu anfitrião. Dela faziam parte não apenas jovens médicos que as usavam como base para tratamentos psicoterápicos, mas também membros de outras profissões, como Max Graf, o crítico de música do jornal "Neue Freie Presse" (e pai do futuro "Pequeno Hans"), o próprio Heller e outros. A indicação tinha sido solicitada pelo livreiro a outras personalidades das elites culturais austríaca e alemã, como Hugo von Hoffmansthal, Arthur Schnitzler, Hermann Hesse, Thomas Masaryk (futuro presidente da Tchecoslováquia, então professor de filosofia em Praga) ou o psiquiatra Auguste Forel; havia artistas conhecidos, políticos influentes etc. As respostas foram publicadas numa revista e depois em forma de brochura, sob o título "Da Leitura e dos Bons Livros": todas traziam, além da relação pedida, uma pequena explicação de por que e como ela tinha sido compilada.

Paciência beneditina
É desse ponto que parte o novo trabalho de Sergio Paulo Rouanet: ele teve a idéia de nos apresentar os livros indicados por Freud, contar-nos sobre seus autores e sobre outras obras que escreveram. Mas o resultado vai muito além disso: Rouanet, um velho amigo da psicanálise e profundo conhecedor da cultura centro-européia, nos brinda com um amplo estudo do papel que as idéias desses autores tiveram sobre o pensamento freudiano e, por essa via, contribui para ampliar nosso conhecimento da própria psicanálise. Não se furta também a exercer sua argúcia interpretativa sobre a biografia e sobre a obra desses dez autores, bem como sobre os motivos que teriam levado Freud a se interessar pelo que escreveram. E tudo isso é apresentado numa prosa límpida e serena, como uma conversa ao pé do fogo numa noite de inverno, ao lado de um bom vinho e de uma caixa do melhor chocolate belga. A extraordinária erudição de Rouanet e a paciência beneditina com que percorre a obra dos dez "amigos" de Freud resultam assim na materialização da própria idéia de um "livro amigo" ou, como queria Heller, um bom livro -não monumentos da cultura como os grandes clássicos, não livros que marcaram profundamente o leitor e o ajudaram a decidir os rumos de sua vida, nem mesmo os seus livros favoritos. Não: um bom livro, que Freud, em sua resposta, compara a "bons amigos, aos quais devemos algo do nosso conhecimento e da nossa concepção do mundo, cujo contato nos proporcionou prazer e que elogiamos diante de outros, sem que essa relação suscite um temor reverencial, uma sensação da nossa própria insignificância diante da grandeza alheia". De fato, "Os Dez Amigos de Freud", como outros trabalhos de Rouanet -"A Razão Cativa" (ed. Brasiliense), "Édipo e o Anjo", "Teoria Crítica e Psicanálise" (ed. Tempo Brasileiro), para só citar alguns-, nos apresenta uma mente lúcida, um iluminista cujo ideal de tolerância e de respeito pela essencial dignidade do ser humano se mostra cada vez mais raro (e por isso mesmo mais valioso) nos tempos sombrios que nos tocou viver. O livro compreende uma introdução, na qual Rouanet apresenta a carta de Freud, o contexto mais imediato em que ela se inscreve e a forma com que vai proceder no exame dos textos indicados pelo pai da psicanálise. Seu pressuposto é o de que, sendo um documento redigido "ohme Nachdenken" (sem muita reflexão, no calor da hora), a carta autoriza uma interpretação que, como sempre, precisa respeitar os vários níveis em que se articula o objeto a ser investigado. Nesse caso, o "objeto" são tanto as obras mencionadas por Freud -cada uma tratada num capítulo, que por sua vez contém um breve estudo biográfico do autor, um resumo do que escreveu e pontes entre suas idéias e determinados aspectos do pensamento freudiano- quanto o próprio fato de ele as ter selecionado, à medida que tal seleção diz algo sobre o próprio Freud.

"Olhares de conjunto"
Por fim, a conclusão retoma as setecentas e tantas páginas anteriores e lança sobre elas três "olhares de conjunto": um para "ver os amigos de Freud em seu meio e em seu tempo" (portanto na história da cultura), um segundo "atento às dimensões afetivas excluídas pelo primeiro olhar" (portanto uma visão mais psicanalítica) e um terceiro, que vê os "amigos" como "personagens da vida mental de Freud" (portanto como "expressão dos (seus) interesses e processos associativos" naquele momento de sua vida).
Na impossibilidade de resumir um texto que trata de tantas coisas, com tanta riqueza de informações e tantas análises de questões específicas, mais vale deter-me sobre o que Rouanet extrai do seu trajeto para esclarecer algo da personalidade de Freud. Os livros que este escolheu compreendem obras de autores muito conhecidos na época, como Mark Twain, Anatole France, Rudyard Kipling (este popularizado na cultura de massa pelos desenhos animados de "Mogli"), Émile Zola, o poeta e ensaísta holandês Multatuli, um russo chamado Merejkovski, escritores de renome na área alemã, como Goltfried Keller e Conrad F. Meyer, o historiador inglês Thomas Maccaulay e o historiador da filosofia Theodor Gomperz. Vários desses nomes são citados igualmente por outros que responderam ao questionário de Heller (Anatole France, Keller, Merejkovski, Zola etc.), o que mostra como "em grande parte a lista de Freud resultou de uma atmosfera intelectual comum, que até certo ponto pré-moldava as escolhas individuais". E no que consiste essa atmosfera? Rouanet elenca um certo número de aspectos: a ideologia do progresso e a fé na capacidade da razão para criar uma sociedade melhor, embora mitigadas por uma corrente menos racionalista, expressa por exemplo pelas idéias de Merejkovski; o início de uma visão crítica sobre o colonialismo e o impressionismo (apesar de Kipling ter escrito, na época da guerra entre os Estados Unidos e a Espanha, o poema "O Fardo do Homem Branco"); o nacionalismo e o patriotismo; e, infelizmente, mais do que uma pitada de anti-semitismo. Freud escolhe sistematicamente autores com quem partilha uma posição liberal (Zola escreveu o manifesto a favor do capitão Dreyfus, e Anatole France foi o segundo a assiná-lo), mesmo que estes, em outros momentos de suas obras, tenham defendido idéias que ele desaprovava. Em suma, suas escolhas o mostram como um homem do seu tempo, atento às questões e aos temas que então ocupavam a cena cultural e social.

Psicografias variadas
Mas é o segundo olhar -o psicanalítico- que revela as afinidades de Freud com seus "amigos". Eles são de dois tipos: os autores que selecionou podem ser vistos como precursores ou aliados da psicanálise, porque acentuam o lado passional, sexual ou intuitivo da vida psíquica; e podem ser vistos como bons objetos para a interpretação psicanalítica, tanto por mostrarem, nos enredos e personagens, "estruturas psíquicas universais" quanto porque suas obras revelam algo da sua própria personalidade. A lista de concordâncias elaborada por Rouanet é de fato impressionante: Multatuli "devassou as raízes sexuais da histeria feminina"; Kipling descreve um ataque histérico na personagem de uma empregada doméstica; France atribui ao sonho e ao passado sepultado uma função bem próxima da que conhecemos pela psicanálise; Merejkovski se detém na figura do andrógino (portanto antecipando a tese psicanalítica sobre a bissexualidade constitutiva do nosso mundo interno), e seu romance sobre Leonardo da Vinci serviu de base para o artigo de Freud sobre o artista; Meyer acentua a natureza contraditória dos impulsos psíquicos e assim por diante. Todos eles emprestam veracidade à idéia freudiana de que os escritores têm uma compreensão profunda da vida psíquica e que são, assim, melhores mestres para os analistas do que os psiquiatras profissionais. Rouanet enumera ainda uma série de afirmações de Freud sobre várias questões, mostrando sua fonte neste ou naquele dos "dez amigos", bem como o porquê do interesse do mestre de Viena -e de seus discípulos também- nas biografias desses autores, que foram objeto de diversas "psicografias" nas reuniões das quartas-feiras. O objetivo dessas análises, por vezes um tanto simplistas, era demonstrar o papel da sexualidade e da defesa na composição da obra literária e em geral artística -um dos cavalos-de-batalha, como se sabe, na luta da psicanálise nascente para firmar seu território.

Reconstrução
A parte final do livro de Rouanet estabelece certas hipóteses acerca dos motivos, em parte inconscientes, que levaram Freud a estabelecer sua lista -e, na própria carta endereçada a Heller, a julgá-la "sonderbar" (estranha). Situando o movimento de 1906 na carreira e na vida de Freud, bem como na política internacional e na vida cultural de Viena, o autor sugere uma reconstrução do que se passou naquela noite na cabeça do dr. Freud, uma "longa meditação" (à qual ele se refere na carta), uma espécie de monólogo interior que aparece em itálico nas páginas 381 e seguintes do segundo volume.
Como nos bons filmes, não cabe estragar o prazer do leitor contando o que Rouanet tem a dizer nessas páginas finais. Não é nenhuma pirueta interpretativa, nenhum malabarismo de tirar o fôlego, mas é inteligente, bem armado e um ótimo fecho para o seu percurso: uma despedida de amigo para amigo, como foi uma conversa de amigo para amigo tudo o que as precedeu.

Renato Mezan é psicanalista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e coordenador da revista "Percurso" (Instituto Sedes Sapientiae). É autor de, entre outros, "Interfaces da Psicanálise" (Companhia das Letras) e "Freud -Pensador da Cultura" (ed. Brasiliense).


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