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Em "A Formação do Nome" e "Autobibliografias", que estão saindo no Brasil, o português Abel Barros Baptista se apóia em críticos como Derrida e Paul de Man para lançar um olhar inovador sobre o autor de "Dom Casmurro"
DESCONSTRUINDO MACHADO
por Luiz Costa Lima
Nos últimos anos, o crítico e ficcionista português Abel Barros
Baptista dedicou dois livros a
Machado de Assis. O primeiro,
"Em Nome do Apelo do Nome" (1991),
reaparece com outro título na edição
brasileira, "A Formação do Nome" e um
novo prefácio. O segundo, "Autobibliografias" (1999), acolhido pela mesma
editora, mantém o título original. O exercício de extrema telegrafia que se segue
buscará sua ossatura básica. Antes de
tentá-lo, se note: quaisquer que sejam as
reações que provoquem, é inconteste
que os dois livros representam um momento excepcional no reconhecimento
da estatura de Machado; ademais, poderá ele favorecer o reexame do que, entre
nós, se tem entendido por literatura. Essa
é a minha esperança.
Já pelo modo como a eles me refiro
posso supor que muito leitor se ponha na
defensiva. Talvez essa postura seja inevitável -sendo apenas de esperar que não
se manifeste pela tática frequente do muro de silêncio-, inevitável porque o argumento que Baptista desenvolve questiona a própria base do paradigma analítico aqui dominante. É o que se mostra
pela análise de o que significa haver sido
o romantismo brasileiro o fundador da
reflexão literária nacional e a leitura contrastante do ensaio de Machado, "O Instinto de Nacionalidade".
O privilégio do romantismo implicou a
constituição de uma lei, que permanece
bem ativa: "Instala a questão nacional
como centro de gravidade da reflexão literária, torna ilegítima toda a tendência
para encarar a possibilidade de a literatura resistir ao Brasil; por outro lado, integra no fio de uma tradição única e contínua as sucessivas e diversas interpretações do Brasil". Contra ela, o ensaio de
1873 nega à referência ao Brasil a condição de fundamento para o "projeto de
construção de uma literatura nacional".
Cor local
Sem me deter no argumento, sublinho tão-só uma de suas consequências: ao passo que "o instinto de nacionalidade" se projeta sobre o passado,
"de que se vê como prolongamento", o
ensaio de Machado recusa à cor local dos
poetas árcades o caráter de sinal distintivo da brasilidade, negando que por isso
já mereceriam ingressar na história da literatura nacional. Ao descartar-se da
carga do "instinto", Machado, na esperteza de que se tornaria mestre, afasta-se
"de uma tradição literária homogênea",
do autoritarismo cordial que já se instalava. Com pés macios, ele abre o coro dos
descontentes.
Em vez de produto da transposição da
realidade para o texto, a literatura supõe
um processo de construção discursiva. O
problema básico de seu entendimento
implica a indagação da linguagem. Nosso essencialismo romântico, em contraste com a empresa dos "primeiros românticos", a esmagava na raiz, tornando
impensável o que seja a ficcionalidade.
Daí que seu questionamento enfatize a
presença do ficcional, da "ficção que
ameaça toda a autobiografia", como dirá
a propósito das "Memórias Póstumas de
Brás Cubas" e que afetará a questão do
autor. Mas, perguntar-se-á o leitor, há
uma questão sobre a autoria!?
O crítico português responderia: tanto
há e é ignorada por força do paradigma
dominante no Brasil que a crítica vigente
se esforça em subsumir os diversos autores supostos dos romances machadianos
-Brás Cubas, D. Casmurro, o Conselheiro Aires- na figura do autor real, o
próprio Machado. Mas, insistiria o leitor:
por que a subsunção não estaria correta?
Ou por que não passaria de mera convenção que, já na fundação do romance
moderno, Cervantes emprestasse seu
Quixote a um certo Cid Hammete? Porque, responder-se-ia, a questão do nome
do autor real ou fictício, em última analise, remete à peculiaridade da linguagem
ficcional.
De maneira menos inexata: para que se
considere a presença de autores fictícios
uma convenção secundária e desprezível
será preciso: a) que se conceba a linguagem como transparência, simples meio
de conversão do mundo em sons, letras,
e palavras; b) que, além do mais, se pressuponha que tal conversão é passível de
pleno êxito, ou seja, que a palavra, afinal,
dirá plenamente e tão-só o que, na condição de coisa do mundo ou de fato social, já se mostrava antes dela. Considere-se ainda o que "Autobibliografias" desenvolve: é falsa a suposição de que a
composição tipográfica teria tão-só otimizado a concepção do livro como metáfora da unidade, pois sua capacidade
multiplicativa não interfere na plurivocidade da fábula ficcional .
Como o suposto leitor não se convenceria com tanta facilidade, procuro uma
formulação mais abrangente. Para isso
talvez baste articular melhor o que já havia dito com o que agora se acrescentou a propósito do livro tipográfico. Formulo
assim a conexão: a afirmação de uma essencialidade nacional -de um quid nacional a que a literatura, para ser brasileira, estaria obrigada a converter em palavras-, não só implicava e implica ignorar a ficcionalidade, com a ênfase consequente nos fatores histórico-sociológicos, não só a crença na transparência da linguagem, mas ainda que a intenção autoral se manifesta na obra que assina. A multiplicidade de cópias iguais, propiciada pela tipografia, teria favorecido essa concepção se se contrapusesse à heterogeneidade interna do texto ficcional.
Sem negar a importância de machadianos que, total ou parcialmente, integram
esse modo de ver -Eugênio Gomes, Augusto Meyer, José Guilherme Merquior e
Roberto Schwarz-, trata-se, para o crítico português, de melhor concretizar o
paradigma a que se opõe. A ele chamará
"o paradigma do pé atrás".
São seus traços fundamentais: 1) o documentalismo -a literatura dá forma ao
que já estava, ainda que de modo indistinto ou pouco claro, no estado do mundo e na configuração da sociedade (a
passagem do romantismo para o documentalismo contemporâneo implica a
menor ênfase sobre o estado do mundo
-o que os nossos românticos sintetizavam como a "nossa natureza"- e o pleno realce da configuração social); 2) a intencionalidade, que daria um sentido
unívoco à fábula ficcional. Esta, de sua
parte, supõe: a) "(...) Todo o livro, onde
apenas o autor suposto fala, é verdadeira
e intencionalmente escrito contra o autor suposto, nisto consistindo a originalidade artística de Machado" ("Autobibliografias"); b) Se um livro contém mais
do que o autor se propunha ou menos é
porque o autor não atingiu a transparência que a linguagem punha a seu dispor.
É sobretudo contra a intencionalidade
que se volta Abel Baptista (o descrédito
prévio do documentalismo poupa-o do
trabalho). Sem a oposição ao intencionalismo, o próprio título de seu segundo livro será incompreensível. "Autobibliografias" significa a tentativa de, por meio do exame do que fazem os autores
supostos e das notas ou prefácios que lançam dúvidas sobre sua intenção ou a
fidedignidade dos textos que se lhes atribui, pôr frente a frente a versão deles e a do autor real; tentativa, e aqui está o elemento decisivo, afinal inconclusiva, pois "o dito difere de si próprio" ("Autobibliografias"). Desse hiato entre o que o autor real teria intencionado dizer, com
ou sem a "colaboração" de supostos autores, e o efetivamente dito resulta a indecidibilidade do texto ficcional. A figura do indecidível não só se contrapõe à prática interpretativa do "pé atrás" como transtorna a leitura habitual
dos cinco romances da maturidade machadiana. Considero esquematicamente
apenas dois exemplos. O primeiro concerne às "Memórias Póstumas" (o interessado deverá recorrer à sua demorada demonstração). O "acidente" a ser explicado é a alusão ao "emplastro Brás Cubas". O início do romance é seu lugar
porque "só o emplastro Brás Cubas pode cumprir a função de princípio organizador da autobiografia" ("A Formação do Nome"). Mas de fato a organiza, isto é,
deixa transparecer a intenção do defunto autor ou, melhor, a verdadeira intenção
de Machado? Por um lado, a resposta pareceria afirmativa: "Atendendo ao modo como tudo se passou, o destino de Brás Cubas se
cumpriu, se completou no emplastro:
(...) cumpre declará-lo como verdadeira
causa da morte". Por outro, entretanto,
instala-se o verme que corrói as certezas:
tudo seria diferente se a Brás a idéia do
emplastro houvesse ocorrido antes. É
considerando o embate entre certeza e
contracerteza que o crítico conclui: "A
morte projeta-se necessariamente sobre
o conjunto da vida, mas não deixa, por
isso, de resultar do acaso: o acaso de um
golpe de ar". Nomeia-se o acaso e o acaso
nega a suficiência da intenção. Isso a menos que se pense que, assim, estaria Machado afirmando que, mesmo uma memória post mortem, é incapaz de converter a vida que relata em um todo uno e
auto-suficiente.
A intencionalidade seria salva, diria em
reforço do argumento de Baptista, ao
preço, contudo, de se afirmar que o acaso impede o que se espera da intencionalidade autoral: declarar o sentido das
memórias, isto é, negar que, mesmo ficcionalmente, a autobiografia dê coerência à vida que narra. A presença do acaso
torna o romance indecidível. Se há por
certo interpretações insuficientes, falsas
ou grosseiramente erradas, não há a interpretação correta, isto é, que esgote o
sentido do dito ficcional.
Resto do resto
É com o mesmo esquematismo que exponho o segundo
exemplo. Ele tem por objeto o capítulo final de "Dom Casmurro". O narrador fictício recapitula seu casamento desfeito e
por duas expressões se refere à memória
que ali terminava: "Mas não é este o resto
do livro. O resto é saber se (...)". A segunda aparece no último parágrafo: "E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber (...)". O intérprete se empenha em acentuar a divergência entre as duas expressões, "o resto do livro" e "o
resto dos restos": "(...) "O resto do livro"
concerne ao caráter de Capitu e aos ciúmes de Dom Casmurro, enquanto "o resto dos restos" respeita ao desígnio do destino qualquer que seja a solução para a
pergunta a que responde o resto do resto" ("Autobibliografias").
No primeiro caso, é a volubilidade de
Capitu, combinada ou não aos ciúmes de
Bentinho, a responsável pela catástrofe
doméstica. No segundo, o destino. O
destino ou o acaso tornam infundada a
certeza da resposta: a inconstância de
Capitu, estimulada ou não pelos ciúmes
de Bentinho, a "invenção" do triângulo
amoroso pelo advogado-narrador etc.
Dada a variedade das respostas, passa a
ser tão parcial a leitura dominante antes
de "O Otelo Brasileiro de Machado de
Assis" (1960), de Helen Caldwell (que
saiu há pouco no Brasil pela ed. Ateliê)
-a traição de Capitu, como disse um
certo intérprete, é uma traição metafísica
(!)-, como a hoje preferida -Bentinho
utiliza sua prática forense para escrever o
processo contra sua mulher.
Ambas são insatisfatórias porque não
respeitam a dignidade da "questão de
Capitu": "A possibilidade da inocência é
inseparável da possibilidade de culpa".
Diante do indecidível, como ainda considerar bastante o princípio da intencionalidade? Ele só tem sentido se se disser que
o propósito de Machado era assumir a
responsabilidade de desconhecer a resposta unificadora da fábula que compôs.
Ora, sem essa unidade é o livro como
metáfora do uno que se dissipa. E o nome do autor passa a indicar apenas sua
responsabilidade jurídica pelo que escreveu. A tipografia, portanto, em vez de
afirmar a unidade do livro, difunde a heterogeneidade interna da ficção.
Não devo terminar esta apresentação
sem antes sair do papel de expositor
equidistante. Limito minha tomada de
posição ao mínimo. O primeiro reparo
concerne ao modo como Abel Baptista
constrói seu argumento -não se discute
sua extrema novidade quanto a Machado. Por explícita influência de Jacques
Derrida -embora seja em Paul de Man
que Baptista encontra a base conceitual
para a caracterização do ficcional como
indecidível- seu texto assume uma disposição claramente digressiva. Será lastimável que ela, embora certas vezes contraproducente, prejudique sua recepção.
No entanto o desestímulo à capacidade
reflexiva que continua a caracterizar os
cursos de letras e a maioria das análises
que se publicam entre nós tornam bastante previsível a reserva e a rejeição.
Estatuto da indecidibilidade
O segundo reparo diz respeito ao estatuto
da indecidibilidade do texto ficcional.
Sem negar que ele seja muitas vezes incontestável, suponho que o tomar como
o ponto final do percurso analítico é um
defeito inversamente proporcional ao do
"paradigma do pé atrás". Se este desdenha a questão da ficcionalidade, para que
privilegie seu caráter documental, o paradigma do indecidível, afirmando que a
ficção neutraliza o mundo, falha pelo
oposto: o ficcional passa a desconhecer
qualquer referencialidade. Para o paradigma dominante, a leitura de um texto
literário visa a reconstituir a posição de
seu autor diante de sua realidade. A indecidibilidade responde pelo oposto: sem
negar que os autores possam ter, como
Machado, uma visão critica de sua sociedade, acrescenta que essa, afinal, é uma
questão secundária.
Diante da alternativa, diria que é aceitável e mesmo salutar afirmar que o interesse por um texto ficcional depende de
ele, dentro de si, trazer um caráter indecidível, no sentido restrito e específico de
o objeto ficcional não se esgotar na interpretação, por certo temporalmente variável, que se lhe dê. Desse modo, repudia-se a idéia da interpretação "definitiva". Seus defensores parecem contudo
esquecer que a própria formulação do
indecidível, historicamente motivada,
não é a última palavra.
Em vez de endossá-la, prefiro pensar
que, do indecidível que hoje encontramos em Machado, se ergue a tematização da ruína com que, por seus autores
fictícios ou por sua própria assinatura, o
romancista diz do modo como se relacionava com seu mundo. O realce das
ruínas em Machado, formulado por João
Adolfo Hansen em texto ainda inédito
em português, não se confunde com a
afirmação de Abel Baptista: "A ficção do
livro no processo de se escrever expõe a
autobiografia arruinada pela autobibliografia". Sua formulação ainda supõe um
"é" intemporal: próprio da ficção é ser
indecidível. A isso será preciso acrescentar o horizonte temporal. Ou seja, reelaborar a operação da referencialidade.
Projeto em ruínas
Temporalizar a interpretação exigiria sua reformulação:
nas coordenadas do mundo presente, o
que ressalta é a ruína de todo o projeto. A
ruína, para falar com Husserl, é um antepredicativo que motiva nossas predicações. Em palavras comuns: é um sentimento que nos predispõe para o modo
como nos situarmos no mundo que nos
coube. Nada impede que, se o mundo
durar, receba ele outro sentido de orientação. E que o indecidível se temporalize
noutro modo de ver. Tais reservas, contudo, em nada interferem no reconhecimento da contribuição do colega português. Ela abre um campo de discussão
que tem se mantido fechado.
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor
de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao
Pensamento" (ed. Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 504
d.C." (depois de Cabral).
A Formação do Nome
271 págs., R$ 34,00
de Abel Barros Baptista. Ed. da Unicamp (r.
Caio Graco Prado, 50, campus Unicamp,
caixa postal 6.074, CEP 13083-970, Campinas, SP, tel. 0/xx/19/3788-1528).
Autobibliografias
604 págs., R$ 65,00
de Abel Barros Baptista. Ed. da Unicamp.
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