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Wallace, o herói esquecido da evolução
NATURALISTA GALÊS INTUIU A SELEÇÃO NATURAL MAIS RÁPIDO, MAS FOI RELEGADO AO RODAPÉ DA HISTÓRIA; SEU BIÓGRAFO ACUSA "INDÚSTRIA ACADÊMICA" SOBRE DARWIN
"Se você olha para as publicações da Sociedade Lineana, é muito claro que a teoria de Wallace é a afirmação mais lapidada. Muita gente dizia a Wallace: "Por que você fica falando na teoria de Darwin? A teoria é tão sua quanto dele!'"
DA REDAÇÃO
No dia 18 de junho
de 1858, Charles
Darwin recebeu
em sua casa uma
carta vinda da ilha
de Ternate, atual Indonésia.
Seu autor era um jovem naturalista galês de 35 anos, Alfred
Russel Wallace. Recuperando-se de uma crise de malária, Wallace mandou a Darwin o manuscrito intitulado "Sobre a
Tendência das Variedades de
se Diferenciarem Indefinidamente do Tipo Original", no
qual enunciava o princípio da
"sobrevivência do mais apto".
A esperança de Wallace era que
Darwin, famoso já naquela
época, gostasse da teoria e lhe
ajudasse a arrumar um emprego quando voltasse à Europa.
Darwin quase caiu para trás
ao ler o manuscrito. Ali, em
cerca de cinco páginas, Wallace
enunciava os princípios que
Darwin vinha ruminando desde 1844 em seu "grande livro
sobre as espécies". Darwin, no
entanto, nunca considerou o livro completo o suficiente para
publicação. Além disso, reza a
lenda, temia ferir os brios cristãos de sua mulher, Emma -e
do resto da Inglaterra.
Desesperado diante da perspectiva de perder a prioridade
sobre a teoria, Darwin escreveu
a Charles Lyell, pai da geologia
moderna (e correspondente de
Wallace), e a seu amigo Joseph
Hooker em busca de orientação. Lyell e Hooker, então, tiveram a idéia de organizar uma
leitura conjunta dos dois trabalhos na Sociedade Lineana. Depois dela, Darwin correu para
preparar um "resumo" de sua
obra para publicação, no ano
seguinte: surgia a "Origem".
Wallace (1823-1914) chegou
a ser considerado o maior cientista britânico. Diferentemente
de Darwin, era um polímata:
seus interesses iam da história
natural ao manejo florestal,
passando pela política de saúde
pública (foi opositor das vacinas) e pelo espiritismo -fato
que o distanciou de Darwin.
No entanto, esse outro pai da
seleção natural acabou relativamente esquecido. Tanto que
as comemorações a Wallace
acontecerão em novembro
deste ano, com a publicação do
livro "Natural Selection and
Beyond: The Intellectual Legacy of Alfred Russel Wallace",
editado por Charles Smith e
George Beccaloni.
"Está saindo deliberadamente neste ano e não no próximo",
ri o britânico Peter Raby. Professor de literatura em Cambridge, Raby é autor da biografia do naturalista, "Alfred Russel Wallace: A Life" (2002).
Em entrevista à Folha, Raby
comenta o legado de Wallace e
acusa a existência de uma "indústria acadêmica" de Darwin
em sua universidade.
(CA)
FOLHA - Por que Wallace ficou relegado a uma nota de rodapé, quando
aparentemente ele intuiu a seleção
natural mais rápido que Darwin?
RABY - Tem havido uma enorme indústria acadêmica em
torno de Darwin emanando de
Cambridge nos últimos 20 ou
25 anos. O Projeto Darwin, que
publicou toda a correspondência dele, após um enorme esforço de pesquisa, é um exemplo.
A outra faceta disso é que a
"Origem das Espécies" foi publicada quando Wallace ainda
estava no exterior. E Wallace,
embora tenha publicado diversos livros famosos, nunca teve a
oportunidade de preencher o
esqueleto da teoria com o mesmo tipo de exposições detalhadas que Darwin apresentou.
Quando Wallace voltou para
casa, a "Origem das Espécies"
havia ocupado a proeminência.
Wallace planejou, sim, um
grande livro...
FOLHA - ...mas ele estava ocupado
demais ganhando a vida.
RABY - Sim, e estava longe de
bibliotecas, vivendo uma vida
de naturalista coletor independente. Ele não teve a oportunidade de se sentar e escrever e
fazer as pesquisas detalhadas
que Darwin teve tempo de fazer. Mas, mesmo assim, é estranho que Wallace tenha se dissipado do imaginário popular. Se
você olha para as publicações
da Sociedade Lineana, é muito
claro que a teoria de Wallace é a
afirmação mais lapidada, enquanto os documentos de Darwin não têm a mesma completude. Muita gente, naquela época, dizia a Wallace: "Por que você fica falando na teoria de Darwin? A teoria é tão sua quanto
dele!" [Charles] Lyell era uma
dessas pessoas; ele dizia a Wallace: "Você é modesto demais"! Sim, ele era.
A outra razão pela qual ele
acabou apartado da doutrina
foram suas reservas posteriores quanto à seleção natural e a
origem do homem. Darwin ficou chocado com aquilo que ele
chamou de "apostasia" de Wallace. Embora Wallace tenha
desposado o darwinismo muito
entusiasticamente, ele mesmo
fez essa grande ressalva. Acho
que essa é uma razão mais compreensível para Wallace ter sido jogado de escanteio.
FOLHA - Nós temos alguma razão
para imaginar que Darwin tenha se
aproveitado do artigo de Wallace
para escrever seu capítulo sobre seleção natural?
RABY - (Pausa) Bem, há versões diferentes dessa história.
Um livro acaba de ser publicado por Roy Davis chamado
"Darwin Conspiracy" ("A
Conspiração de Darwin"). Há
algumas perguntas sem resposta sobre como Darwin agiu. Eu
diria que foi Hooker o responsável por assegurar que Darwin
tenha obtido o maior crédito
possível pela publicação conjunta. O próprio Darwin ficou
ligeiramente surpreso ao ver
que seus documentos acabaram sendo mais do que apêndices ou notas de rodapé aos de
Wallace. Quanto à sugestão de
a carta de Wallace ter chegado
antes do que Darwin disse que
ela chegou, portanto dando a
Darwin tempo de escrever e
pensar a respeito, é um cenário
perfeitamente plausível. Só que
eu não acho que haja nenhuma
evidência concreta disso.
O argumento de Roy Davis é
que o sistema de correios da
Holanda [a Malásia e a Indonésia eram colônias holandesas
quando Wallace estava no Pacífico] eram extremamente eficientes, e se tudo corresse conforme planejado, a carta deveria ter chegado antes de 1º de
junho de 1858. É uma hipótese
interessante, mas, a meu ver,
especulativa. A questão continua em aberto. Fato é que Wallace não recebeu todo o crédito
que deveria ter recebido.
FOLHA - O sr. esteve no Brasil durante as pesquisas da biografia de
Wallace?
RABY - Infelizmente não. Eu tinha pouco tempo e pouco dinheiro na época. Fui a Cingapura e a Sarawak [Malásia],
porque eu queria ver pelo menos um lugar onde Wallace pesquisou. Espero poder ir ao Brasil, porque há outras pessoas
nas quais eu sou extremamente
interessado que viajaram pela
Amazônia. Meu livro anterior,
"Bright Paradise", era sobre
viajantes científicos vitorianos.
Eu escrevi sobre Wallace, mas
também sobre Richard Spruce
e Henry Walter Bates.
FOLHA - O quão importante foi a
Amazônia na formatação da mente
científica de Wallace? O sr. escreveu
que, quando ele chegou ao Brasil,
ele era um coletor mercenário, e
quando foi para as Índias, era um
cientista em formação.
RABY - Aqueles quatro anos na
Amazônia moldaram a mente e
a vida de Wallace. Foi em parte
o ambiente da Amazônia e como ele respondia a ele. Mas
também todas as reflexões que
aconteceram. Claro que ele não
conseguiu explorar essas reflexões da maneira como ele planejava, por causa da perda de
parte de seu material [num navio que pegou fogo a caminho
da Inglaterra], mas não obstante isso deu a ele a amplitude de
visão e o tempo de reflexão de
que ele precisava para ser mais
do que um colecionador. Eu
sinto muito fortemente que
não a teoria final, mas seu instinto sobre as espécies, que seria esclarecido no arquipélago
malaio, os alicerces disso foram
construídos na Amazônia.
Quando Bates escreve para ele,
após ter lido o artigo de Sarawak sobre variedades de espécies-que você pode chamar de
estágio 1 da seleção natural-,
Bates disse mais ou menos assim: "Eu fiquei surpreso ao vê-lo se posicionando tão assertivamente sobre a teoria. Uma
teoria que, como você sabe, foi
minha também". O que me sugere uma ligeira censura, mas
sugere também que Bates e
Wallace, e talvez Spruce também, já haviam discutido essas
coisas na Amazônia.
FOLHA - Mesmo após a evolução,
Wallace passou o resto da vida meio
deslocado depois que voltou para a
Europa. É verdade que ele nunca arrumou um emprego decente?
RABY - Acho que escrever se
tornou o emprego decente dele.
Ele escrevia muito fluentemente, num estilo muito claro.
Ele achava que poderia ganhar
dinheiro escrevendo livros,
além de artigos. Ele se candidatou a vários outros trabalhos e
não conseguiu nenhum. Ele se
virava para viver. Algumas vezes ele estava bem de vida, outras vezes ele parecia apertado.
Mas ele vivia muito feliz, e eu
acho que essas duas grandes expedições, à Amazônia e ao arquipélago malaio, tornaram-no
irrequieto psicologicamente.
Ele se candidatou ao cargo de
secretário-assistente da Royal
Geographical Society, e não
conseguiu, embora Bates,
quando voltou, tenha visto no
cargo uma oportunidade de se
reintegrar ao "establishment"
científico. Acho que Wallace
curtia não seu isolamento, mas
sua independência.
FOLHA - Sr. vai fazer alguma coisa
no dia 1º de julho?
RABY - Vou erguer um brinde a
Wallace.
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