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Sociedade
Mito de chuteiras
Historiador explica como a Copa de 58 consagrou a idéia do Brasil mestiço, formulada por José Lins do Rego e Nelson Rodrigues desde os anos 30
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Há 50 anos, quando
Brasil e Suécia entraram em campo
para decidir a Copa
do Mundo de 1958,
um debate ideológico também
começava a tomar corpo. Para
o especialista em história do
esporte Victor Andrade de Melo, tratava-se da sedimentação
de uma idéia de Brasil em que
se apostava desde os anos 1930.
O professor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro vê
naquela Copa o triunfo da
construção de identidade nacional engendrada por autores
como José Lins do Rego e Nelson Rodrigues: o brasileiro é
como seu futebol.
Para Melo, autor de "Cinema
e Esporte" (editora Aeroplano), 1958 também foi o ano em
que dois projetos concorrentes
colaboraram para o triunfo nacional: o paulista -diligente e
apolíneo, personificado em Pelé- e o fluminense -malandro, dionisíaco, à moda de Garrincha-, que explica na entrevista abaixo.
FOLHA - O Brasil só passou a ser o
país do futebol em 1958?
VICTOR ANDRADE DE MELO - A importância de 1958 é que finalmente ratificou uma construção dos anos 1930. Há a construção de uma identidade nacional, uma elegia da mestiçagem como "jeito brasileiro".
Isso tem repercussão direta
no futebol: o caráter mestiço dá
a genialidade ao futebol brasileiro. É uma construção discursiva, a partir das idéias de Gilberto Freyre, que tem, num primeiro momento, dois grandes
tradutores: Mário Filho e José
Lins do Rego. Eles utilizam os
meios de comunicação para difundir essas idéias.
FOLHA - Qual foi o papel da imprensa nessa construção?
MELO - É fundamental. José
Lins do Rego, Mário Filho, Nelson Rodrigues; Ary Barroso, no
rádio -todos constroem a idéia
de que o futebol brasileiro é peculiar, representa a malandragem do brasileiro, idéias que
hoje são naturalizadas.
Essa idéia fracassou em 1950
-perdemos a final e "perdemos
porque o caráter do brasileiro é
fraco". Nelson traduz essa idéia
como "complexo de vira-lata".
Em 1954 perdemos de novo.
Em 1958 é ratificada essa idéia,
e alguns dizem que o Brasil é
respeitado pela primeira vez.
FOLHA - Elementos como a criatividade, o individualismo e a desorganização fazem do futebol brasileiro uma boa metáfora do Brasil?
MELO - O futebol é uma chave
para compreender a cultura
brasileira. Mas não é melhor
que qualquer outra. Há, diversas vezes, uma ligação muito linear entre futebol e cultura
brasileira: "O futebol é desorganizado, mas dá certo; a política
é desorganizada, mas pode dar
certo". Não dá para dizer que o
futebol é um espelho do país.
Mas essa idéia tem a ver com
aquela construção discursiva.
FOLHA - Portanto não é uma boa
interpretação do Brasil?
MELO - Ela carrega muito de
ideal, pois havia a preocupação
de construir uma idéia de nação. Não é pior nem melhor,
mas deve ser situada em seu
momento histórico. "Brasileiro
ginga bem e tem jogo de cintura." É verdade para todos? Não.
FOLHA - Mas o discurso persiste.
MELO - Muito desse discurso,
sim, mas hoje não há uma leitura tão direta. Alguns meios de
comunicação irão repetir esses
debates nos Jogos Olímpicos.
Isso lembra Sydney [em 2000],
em que o Brasil não ganhou
medalha de ouro -"isso demonstra como a nação não vai
bem...". Não necessariamente.
FOLHA - Que jogador da seleção de
1958 representa melhor a idéia que
se consolidou de futebol brasileiro?
MELO - Dois grandes jogadores
de certa forma representam os
projetos de nação. A imagem
que se construiu do Pelé, notadamente pela imprensa paulista, é a do atleta disciplinado, dedicado, rigoroso. E Garricha,
"flâneur", malandro, elogiado
pela imprensa carioca.
Esse embate tem relação
com a idéia de quem deve ser o
homem brasileiro. Nelson Rodrigues busca a síntese: o brasileiro não é nem um nem outro,
o Brasil precisa dos dois.
Além disso, os jogadores não
eram tão opostos.
FOLHA - Como a imagem do Brasil
como país do futebol contamina outras áreas, como as artes?
MELO - Uma manifestação artística historicamente ligada ao
futebol é o samba, uma outra
chave para mostrar como somos: o jogo de cintura.
FOLHA - O samba, as artes ganham
com a influência do futebol?
MELO - Há uma enorme presença do futebol no cinema,
mas isso não potencializou
uma forma brasileira de fazer
cinema. O futebol foi incorporado e pronto. Nas artes plásticas há Rubens Gerchman, mas
esse diálogo não foi necessariamente intenso. O futebol tem
penetração, por isso é usado
para ter alcance popular.
FOLHA - Há excesso de futebol na
cultura brasileira?
MELO - O futebol é o esporte
mais popular no mundo e tem
importância na construção da
identidade nacional. Por exemplo, quando Angola se classificou para a Copa da Alemanha
[2006], uma festa impressionante tomou conta de Luanda.
Não diria que há exagero.
FOLHA - Essa centralização do futebol tem como decorrência uma falta
de opções, uma pobreza cultural?
MELO - Durante muitos anos
negligenciamos uma política
esportiva que fizesse outros esportes chegarem à população.
Quando houve investimento
no vôlei, esse esporte se tornou
uma febre. O problema não é o
futebol, mas a falta de investimento nos outros esportes.
FOLHA - Como compara o esporte,
na condição de espetáculo, à arte?
MELO - Vemos os planos cinematográficos introduzidos na
cobertura, desde o "Canal 100"
[cinejornal criado nos anos 50],
a narração épica. No início a
torcida era o povo; agora vemos
celebridades. E os jogadores
são celebridades. Certamente a
exposição é muito maior hoje
do que em 1958.
FOLHA - Isso é bom para o esporte?
MELO - A lógica esportiva extrapolou os gramados. Há futebol no videogame, há olimpíadas de matemática. Práticas
que não eram esportivas estão
se tornando esportivas, como
danças de salão. O esporte tem
uma sensibilidade muito adequada à modernidade capitalista: o mais rápido, o mais forte, o
que produz melhor.
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