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Guerra fria e íntima
"Prezado Sr. Stálin" traça um panorama do mundo pós-1945 ao revelar cartas trocadas entre o soviético e Roosevelt, dos EUA
ANGELO SEGRILLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ao que parece, não
foi apenas na União
Soviética que alguns documentos
secretos da Segunda Guerra só vieram à tona depois do fim da Guerra Fria.
Ao fazer pesquisa na Biblioteca Franklin D. Roosevelt, depositária do acervo de documentos pessoais do ex-presidente americano, a jornalista
Susan Butler encontrou várias
cartas não divulgadas anteriormente na edição soviética da
correspondência oficial entre
Stálin, Roosevelt/Truman e
Churchill/Attlee (publicada
em inglês em 1965 pela editora
Capricorn, de Nova York).
É um livro fascinante, pois se
pode acompanhar, narradas diretamente pelos líderes mundiais daquele momento, as negociações que levaram à vitória
sobre o fascismo e o estabelecimento de um pós-guerra regido pela ONU. Para a leitura se
tornar atraente e inteligível para o público geral, a autora contextualizou cada mensagem
com um texto explicativo prévio, tornando a narrativa agradável e fluida.
O livro não traz nenhuma
grande reviravolta em termos
de debates históricos sobre o
período. Mas a força da obra está em mostrar os bastidores
(inclusive pessoais) das decisões-chave para a vitória na
guerra e o esboço do mundo
pós-guerra.
Por exemplo, uma das razões
para que a grande conferência
do conflito fosse realizada em Ialta pode ter sido bem mais
prosaica do que a propalada vitória diplomática dos russos
para terem a reunião em seu
território. Na verdade, Stálin
odiava viajar de avião. A única
vez em que voou foi para participar da conferência de Teerã,
em 1943. Não só tinha "fear of
flying" [medo de voar] como temia acidentes premeditados.
Um outro exemplo diz respeito à relação pessoal entre
Roosevelt e Churchill.
A correspondência mostra
claramente que Roosevelt não
era tão próximo de Churchill
quanto este deixou entrever
em seus escritos. A desconfiança do ranço colonial do primeiro-ministro inglês freqüentemente unia Roosevelt e Stálin
em sua visão de como deveria
ser o pós-guerra nos países do
Terceiro Mundo.
Há outros episódios importantes cujos bastidores a correspondência ajuda a iluminar.
Assim que a União Soviética
é invadida de maneira fulminante pela Alemanha, em junho de 1941, Roosevelt, contra
a opinião de considerável parte
do Departamento de Estado e
da Defesa, oferece uma grande
ajuda ao país em termos de
equipamentos e víveres no programa de "lend-lease".
Com essa previdente ação, o
líder americano não só ganhou
a sincera gratidão de Stálin naquele momento delicadíssimo
como assegurou que a União
Soviética não cairia: ao continuar lutando, a União Soviética
mantinha ocupadas, longe da
Europa Ocidental, muitas tropas alemãs.
Tom amistoso
Isso nos conduz a outro episódio-chave. Os contínuos
adiamentos (provocados especialmente por Churchill) do desembarque na Normandia, que
abriria uma grande frente de
guerra na Europa Ocidental e
diminuiria a pressão dos alemães na frente oriental contra
os soviéticos.
Ela foi adiada de 1942 para
1943 e, depois, para 1944. Isso
fez com que Stálin desconfiasse
que Inglaterra e EUA queriam
que Alemanha e União Soviética se digladiassem e se enfraquecessem. É fascinante acompanhar a troca de argumentos
entre os líderes nesse período.
Das 300 mensagens trocadas
entre Roosevelt e Stálin, o tom
da maioria é bastante amistoso,
incluindo votos de saúde e congratulações por vitórias.
De forma curiosa, um dos
pontos que geraram mais mensagens tensas foi um assunto
aparentemente menor: a questão do governo da Polônia no
pós-guerra. EUA e Inglaterra
apoiavam o governo polonês no
exílio em Londres e a União Soviética, o chamado Comitê de
Lublin.
Na verdade, havia uma problemática maior por trás disso.
Os acordos de Ialta tinham,
na prática, acertado uma divisão de esferas de influência
com a Europa Ocidental, para o
lado dos EUA, e a Europa
Oriental (de onde os nazistas
foram expulsos pelos soviéticos), para a URSS? Ou poderiam os ocidentais, por exemplo, influenciar os eventos dentro da Polônia?
Na correspondência, Roosevelt acaba desistindo de insistir
nesse ponto e aceita a influência soviética na Europa Oriental como um dos requisitos para Stálin aceitar sua visão de
uma Organização das Nações
Unidas em que os EUA, a União
Soviética, o Reino Unido e a
China seriam os grandes guardiães da paz.
O livro termina em um anticlímax. Roosevelt morre subitamente, e seu sucessor, Truman, em vez de prosseguir a
aproximação com a União Soviética, desvia-se para a política
de confrontação da Guerra
Fria. A pergunta que certamente fica na cabeça dos leitores ao
final da obra é inescapável: teria o pós-guerra sido diferente
caso Roosevelt prosseguisse
como presidente?
ANGELO SEGRILLO é professor de história na
USP e autor de "O Declínio da URSS" (Record) e
"O Fim da URSS e a Nova Rússia" (Vozes).
PREZADO SR. STÁLIN
Autora: Susan Butler
Tradução: Sérgio Lopes
Editora: Zahar (tel. 0/xx/21/ 2108-0808)
Quanto: R$ 59 (424 págs.)
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