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+ sociedade
Assassinatos de moradores de rua em SP apontam a falência da explicação economicista
e sublinham o alcance da paixão destrutiva, que se materializa no prazer de matar
O espaço público como ódio
Alba Zaluar
especial para a Folha
No século passado, vários pensadores brasileiros apontavam a
rua como abrigo dos miseráveis,
impressionados com a facilidade
com que pessoas dormiam e viviam nas
ruas de nossas cidades tropicais e subtropicais, onde raramente poderiam morrer de
frio. Hoje, horrorizados, assistimos ao
massacre dos que procuraram a acolhida
na rua. O que essa série de assassinatos tem
de especial e de aterrorizador? Ao contrário dos homicídios cometidos por motivos
diversos e sentimentos variados, esses se
movem exclusivamente pelo ódio. Um
ódio que não deriva da inveja ou da frustração ou do ressentimento gerado pela vítima, mas de uma categoria de pessoa que
é apontada pela ideologia adotada como a
razão dos males sociais diagnosticados
com a lógica do bode expiatório. Os alvos
podem ser muitos.
Nos EUA, durante décadas dirigia-se aos
negros, mas evoluiu para incluir outros
grupos aos quais os perpetradores são hostis, grupos esses baseados no gênero, na
orientação sexual, na religião, na incapacidade física ou mental e na condição social
de imigrante ou de miserável. Por isso
mesmo são chamados de crimes do ódio.
Alguns consideram essa classificação redundante, pois as ações feitas, sejam elas
agressões verbais ou físicas, vandalismos,
assassinatos, já constituem crimes. O que
estaria em foco, então, seria o pensamento
que presidiu as ações. Na verdade, crimes
impelidos pelo ódio criado em idéia preconceituosa são mensagens dirigidas aos
demais membros do mesmo grupo para
dizer que sumam ou que não são bem-vindos. Daí o seu terror, pois pretendem intimidar, coagir e apavorar os que escaparam
dos ataques.
Terrorismo
Seus efeitos são similares
aos do terrorismo, que também cria o imprevisível e a incerteza do ataque, que também surpreende as vítimas, impedindo-as
de ter meios de defesa ou dificultando a fuga. Por isso mesmo, os crimes do ódio, assim como os do terrorismo, têm efeitos
psicológicos mais sérios do que os crimes
não motivados pelo preconceito, na medida em que não é mais possível prever o
comportamento alheio, portanto deixando de funcionar os parâmetros do perigo e
da ordem assim como os fundamentos da
confiança, sem a qual não existe vínculo
social positivo. Nessas situações é o medo
sem direção, isto é, o pânico que prevalece.
Mas, diferentemente do terrorismo, seus
alvos são sempre determinadas categorias
de pessoas e suas ações são pouco planejadas por pequenos grupos de jovens que escolhem afirmar a ideologia pela ação "direta" da violência.
No estado atual da arte, as séries de assassinatos de mendigos e meninos de rua destroem o argumento economicista que não
deixa enxergar a dimensão do poder, do
simbólico e da paixão destrutivos: o triunfo sobre o outro, o orgulho pela destruição
do outro, o prazer de ser o senhor da vida e
da morte, o gozo no excesso da liberdade
dos massacres arbitrários. Wolfgang
Sofsky, sociólogo alemão que estudou o
terror e escreveu um tratado sobre a violência, narra com crueza o que vem a ser a
paixão dos que adquirem o gosto de matar
por matar. "Matei e tive prazer nisso" é
uma declaração comum aos jovens de
orientação neonazista que vêm matando
mexicanos, negros, brancos, homossexuais, judeus, muçulmanos, bêbados e
mendigos nas cidades localizadas nos mais
diversos Estados americanos.
De acordo com uma organização não-lucrativa que traça os crimes do ódio, havia
mais de 500 grupos operando nos Estados
Unidos em 1998. O Centro Simon Wiesenthal, de Los Angeles, monitora ainda mais:
há cerca de 2.100 portais do ódio na internet que atacam principalmente os judeus,
ficando os muçulmanos em segundo lugar. Mais uma ironia da história que irrompe no país que tem legislação própria
para esse crime: o Hate Prevention Act
[Ato de Prevenção contra o Ódio], de 1999,
que permite a ação penal contra os que cometeram crimes motivados por raça ou
cor, religião, orientação sexual, origem nacional ou étnica da vítima e cometidos com
a intenção de impedi-la de exercer um direito federal.
E quem são os criminosos movidos apenas pelo ódio a uma categoria de pessoa?
Não são de grupos políticos que participam do jogo parlamentar, mas de pequenos grupos e organizações secretas divididas em células, às vezes lobos solitários que
agem sozinhos ou em pares para afirmar
em ação concreta a recusa absoluta a incluir as possíveis vítimas no mundo dos
que devem ser preservados ou respeitados.
Mesmo estes vêm geralmente de organizações neonazistas que propagam idéias de
intolerância e discriminação, espalhando o
ódio nas mentes mais jovens.
Porque são jovens os que procuram afirmar-se junto de seus pares, tomando iniciativas não programadas pelas organizações a que pertencem, aplicando diligentemente e violentamente suas idéias discriminatórias. Buscam a aprovação dos dirigentes para subir na hierarquia da organização. Buscam o prazer de matar e a glória
de ser um guerreiro em uma guerra imaginária. Um jovem americano, Mieske, cuja
alcunha é Ken Morte, está encarcerado pela morte de um mendigo. Glorificado por
sua organização como prisioneiro de guerra, Mieske escreveu um poema chamado
"Violência sem Sentido", uma reflexão sobre suas experiências: "Alinhe-os contra
uma parede,/ Fuzile-os e observe-os morrendo./ Adoro ouvir sua agonia:/ Eles vomitam, gritam e choram".
Crime hediondo
No Brasil não se tem
nem o conhecimento nem o controle das
organizações neonazistas, mesmo aquelas
que são identificadas apenas como grupos
de estilos de vida ou de lazer juvenis. Também não há uma classificação específica
para esse tipo de crime, que não é considerado hediondo. Espanta a audácia dos que
perpetram o assassinato de mendigos na
maior cidade brasileira. A repercussão de
seus crimes nos jornais do país, as manifestações de repúdio vindas de muitas partes,
as declarações firmes de autoridades, os
cuidados com os sobreviventes, nada disso
tem impedido a continuidade do morticínio. O ovo da serpente tem que ser destruído com a punição legal de seus autores. A
investigação inteligente vai desmantelar as
organizações que espalham o ódio nos corações e mentes juvenis e os levam a cometer tais atrocidades.
Mas a prevenção contra a intolerância religiosa, étnica, racial, de orientação sexual e
de origem geográfica e cultural dos migrantes deve fazer parte do currículo escolar nas cidades e regiões metropolitanas,
como São Paulo, caracterizadas pela diversidade de seus habitantes. Só propalando a
tolerância neutraliza-se o ódio e o preconceito. E só assim se pode ser cidadão de
uma cidade cosmopolita.
Alba Zaluar é antropóloga e coordenadora do Núcleo de Pesquisa das Violências, ligado ao Instituto
de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. É autora de "Integração Perversa - Pobreza e Tráfico de Drogas" (ed. FGV).
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