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A MPB DO B
OBRA MULTIDISCIPLINAR, "DECANTANDO A REPÚBLICA" PROPÕE QUE A MÚSICA
MOLDOU UM IMAGINÁRIO NACIONAL QUE APONTA OS IMPASSES DO BRASIL
João Cezar de Castro Rocha
especial para a Folha
Não é tarefa fácil resenhar este
projeto, pois é disto que se trata:
um projeto, e não apenas três livros reunidos pela temática comum. Na "Apresentação", reproduzida
em cada um dos volumes de "Decantando
a República", os organizadores esclarecem
suas hipóteses centrais.
De um lado, desejam "celebrar a singularidade do cancionista brasileiro como sujeito de uma interpretação vertical do país"
(I, 20). De outro, observam que "a história
da canção popular brasileira acabou sempre inevitavelmente entrelaçada à história
de nossa República" (I, 20-21).
Noutras palavras, parte-se do princípio
de que a música popular brasileira desempenhou papel de grande importância, ainda não devidamente reconhecido, na criação de um imaginário capaz de pensar os
limites e as possibilidades do país republicano. Ora, considerando-se "a persistência
e a amplitude social do analfabetismo e da
presença de uma população em larga medida semi-escolarizada" (I, 18), não é de
surpreender o destaque assumido por formas audiovisuais de comunicação na origem de nossa "comunidade imaginada",
retomando a célebre expressão de Benedict Anderson.
Aliás, [o escritor] Manuel Antonio de Almeida compreendeu a potência da música
e, em sentido amplo, da festa na organização dos primórdios da vida urbana no Brasil. Não é verdade que ambas pontuam e
muitas vezes estimulam as aventuras do
protagonista de seu romance? Recorde-se,
a propósito, o capítulo 20 do livro 1 das
"Memórias de um Sargento de Milícias",
no qual Leonardo e Luisinha apreciam os
fogos de artifício da celebração do "Império": "Fazia gosto passear entre eles, e ouvir
aqui a anedota que contava um conviva de
bom gosto, ali a modinha cantada naquele
tom apaixonadamente poético que faz
uma das nossas raras originalidades (...)".
Portanto, nos anos 50 do século 19, a música urbana já aparecia como traço original
da sociedade que se formava "no tempo do
rei". É como se os organizadores de "Decantando a República" aprofundassem a
aguda nota de Manuel Antonio de Almeida por meio de esforço interdisciplinar.
Em sua descrição, "um grupo de 31 renomados filósofos, historiadores, sociólogos,
cientistas políticos, psicanalistas, antropólogos e críticos literários, vindos de diferentes pontos do país", dedicou-se a discutir de que modo "os principais temas do republicanismo contemporâneo vêm sendo
ou não expressos pela canção popular moderna brasileira" (I, 19).
O único "especialista" do grupo é Carlos
Sandroni, compositor e professor de etnomusicologia. Retornarei a esse ponto. De
imediato, porém, apresento um panorama
das contribuições dos três volumes, pois,
naturalmente, não será possível discutir os
26 ensaios neles enfeixados.
O primeiro volume, "Outras Conversas
sobre os Jeitos da Canção", reúne alguns
dos ensaios mais diretamente relacionados
à pergunta sobre a especificidade da música popular brasileira.
Identificação política
Carlos Sandroni abre o volume com "Adeus à MPB",
ensaio no qual propõe a arqueologia do
conceito, assim como sua desconstrução:
"Quem pensa em música popular brasileira tem em mente alguma concepção de
"povo brasileiro", tanto quanto quem adere
a ideais republicanos" (I, 25). Num primeiro momento, até os anos de 1940, música
popular remetia a folclore. Tratava-se da
música do "povo", do meio rural, do Brasil
"profundo", por assim dizer. Porém, com
o advento do rádio e da indústria fonográfica, a música produzida nos grandes centros começou a tornar-se cada vez mais
"popular". Ou seja, apreciada por um número sempre crescente de ouvintes.
Assim, a partir dos anos 1960, a expressão "música popular brasileira" passou "a
designar inequivocamente as músicas urbanas, veiculadas pelo rádio e pelos discos" (I, 29). No final da década de 1960,
transformou-se numa sigla: MPB, "quase
uma senha de identificação político-cultural" (I, 29), um símbolo de resistência contra a ditadura militar.
Hoje em dia, o panorama tornou-se mais
complexo. De um lado, a variedade de sons
e ritmos disponíveis no mercado pulverizou o sentido coeso da idéia de MPB. De
outro, a oposição simples entre música folclórica e urbana foi superada pela fusão de
estilos, característica da música contemporânea. Eis a razão do provocador título
de seu ensaio, "Adeus à MPB".
Maria Alice Rezende de Carvalho e Luiz
Werneck Vianna exploram a capacidade
que tem a música de criar mediações entre
o Estado, a elite e as classes populares.
Em "O Samba, a Opinião e Outras Bossas... na Construção do Brasil Republicano", Carvalho associa de forma sugestiva a
ascensão do samba nos anos 1930 e da
marchinha nos anos 1940 com os meios de
comunicação da época; respectivamente,
rádio e cinema. A televisão exerceria influência semelhante nos anos 1960, com os
famosos festivais da canção. A difusão assegurada pelos novos meios audiovisuais
foi decisiva para a penetração da música
popular no imaginário brasileiro. Daí seu
acorde final: "A música popular (...) constitui-se no mais bem-sucedido discurso
sobre a "res publica" entre nós" (I, 65). Em
"Os "Simples" e as Classes Cultas na MPB",
Vianna dialoga com essa perspectiva, ressaltando sua capacidade de estabelecer
pontes de comunicação que atravessariam
as diferentes classes, "acrescentando uma
intervenção reflexiva em favor da afirmação da experiência do brasileiro" (I, 78).
"Boa para pensar"
O segundo volume, "Retrato em Branco e Preto da Nação
Brasileira", como o próprio título esclarece, concentra os artigos preocupados em
decifrar as imagens de país propostas pelos compositores. Tanto nos ensaios já citados quanto nesse segundo volume, a
MPB é como os mitos para Claude Lévi-Strauss -vale dizer, ela é "boa para pensar". No caso, para o brasileiro pensar o
país, pensando-se ao mesmo tempo.
Em "O Brasil, de Noel a Gabriel", José
Murilo de Carvalho identifica com agudeza quatro movimentos na auto-imagem
do país por meio da música popular, indo
da representação do malandro carioca como o brasileiro por definição, nos anos
1930, até o momento atual, em que as canções "que falam de Brasil revelam grande
agressividade e uma rejeição da própria
idéia de pátria" (II, 38). Em "Que País É Este?", Eduardo Jardim descreve a mesma situação: "A geração de novos músicos, surgida nos anos de 1980, em atividade nos
1990, é de críticos perplexos, raivosos e radicais de toda conceituação otimista do locus nacional" (I, 55).
Sem apego à cor local, a aquarela do Brasil viu-se reduzida ao preto-e-branco.
Heloisa Starling, em "Uma República
"Pelas Tabelas'", relaciona Chico e Sérgio
Buarque de Holanda, por meio de penetrante estudo da canção "Pelas Tabelas".
Ora, em meio ao comício das "Diretas
Já", o narrador surge como a inesperada
metonímia do célebre conceito de "Raízes
do Brasil", pois, em meio à comoção cívica, não sabe senão pensar em suas pequenas mazelas. "O homem cordial (...) vive
sempre pelas tabelas, sempre instável,
sempre na iminência de precipitar toda a
sociedade no fundo emotivo de suas paixões intensas" (II, 113). O universo público
é somente pretexto para a expansão do
mundo privado. Aliás, como sabe muito
bem o "malandro-deputado-federal" de
outra canção.
Por fim, a coleção se encerra com "A Cidade Não Mora Mais em Mim". Se os dois
primeiros volumes tinham como tema dominante a reconstrução histórica, neste último os textos privilegiam a cena contemporânea. Em "Malandro? Qual Malandro?", Wanderley Guilherme dos Santos
oferece uma reflexão surpreendente. Em
seu estudo de canções sobre a figura do
malandro, descobriu sua "alienação e falsa
consciência" (III, 26). Em geral, ele está fugindo da polícia, escondendo-se de credores, perdendo o pouco dinheiro que tem
para "malandros" de grosso calibre. Nesse
caso, as alternativas são limitadas: "Ele
achaca o zé-mané", isto é, alguém do povo.
Acorde dissonante
O contraponto
da figura do malandro é identificado nos
rappers, que produzem "uma coisa inteiramente distinta, sem nenhuma falsa
consciência, sem nenhuma alienação" (III,
30). E aqui, mais uma vez, não há imagem
possível da pátria. Após citar a longa letra
de "Soldado do Morro", de MV Bill, Santos
termina tocando um acorde dissonante
(mas que precisamos ouvir): "Eu não sei
que país está por trás de tudo isso, eu não
sei interpretar esse país" (III, 36).
Em seus textos, Luiz Eduardo Soares e
Maria Rita Kehl oferecem, se não uma resposta, pelo menos um conjunto de perguntas incontornáveis, às voltas com a formação da subjetividade diante de severas
restrições materiais. Na fórmula cortante
de MV Bill: "Não sei se é pior virar bandido/ Ou se matar por um salário mínimo".
Soares, em "Uma Questão de Atitude",
analisa a contribuição do grupo O Rappa,
propondo hipóteses tão ousadas quanto
originais. Ele sugere que a agressividade
tanto do rapper quanto dos meninos que
se associam ao tráfico tem a finalidade de
"constituir uma interlocução pelo avesso"
(III, 55). Ora, se tornamos os garotos pobres invisíveis, fantasmas que habitam as
esquinas e os sinais de trânsito, sua resposta é fazer da criminalidade uma arma simbólica "de afirmação e de recuperação de
presença e visibilidade" (III, 56).
Percebe-se então o alcance do trabalho
de grupos como O Rappa. De um lado, eles
transformam a violência autodestrutiva
em força criativa, mobilizadora. De outro,
fornecem um novo modelo para as relações eróticas e amorosas nas comunidades. Em lugar da idealização do traficante,
o rapper surge como "um modelo alternativo, em todo o Brasil, para o desejo das
meninas" (III, 65). Desse modo, MV Bill
corta fundo com sua lâmina: a saída não é
matar o trabalhador, tampouco se matar
trabalhando, mas transformar a precariedade e o desafio em letra de música, como
se fosse uma denúncia.
Em "Da Lama ao Caos", Kehl estuda o
trabalho do grupo Nação Zumbi, abordando a "relação entre os espaços público
e privado na música popular brasileira"
(III, 141). Nesse ensaio, é como se a autora
sugerisse que o tempo de Macabéa, protagonista de "A Hora da Estrela", de Clarice
Lispector, teria sido muito distinto se ela
pudesse ouvir músicas como as do grupo
Nação Zumbi, em lugar de somente escutar a Rádio Relógio. Provavelmente, um
tempo que se afirmaria "na forma da "philia", da amizade. A idéia forte aqui é que o
espaço que o cantor considera como seu
não é o isolamento do lar, e sim o ponto de
encontro com os amigos" (III, 154). Amigos que conferem visibilidade, numa rede
de afetos e espelhos que rompe com a técnica de invisibilização do pobre, do excluído; técnica essa dominada com maestria
pelas elites brasileiras.
A simples descrição dos três volumes
evidencia a relevância do projeto. "Decantando a República" propõe um instrumental metodológico para o estudo sistemático
da música popular brasileira como novo
objeto a ser incorporado pelas ciências humanas, revelando um olhar alternativo sobre a obsessão recorrente do pensamento
social brasileiro com o problema da identidade nacional.
Claro, esse tipo de abordagem não é inédito. Já em 1937, Mário de Andrade organizara o Primeiro Congresso Nacional de
Língua Cantada, com preocupações aparentadas. Porém a interdisciplinaridade explorada agora por esses três volumes amplia em muito sua escala. "Decantando a
República" esclarece que a música popular
expressa um crescente desencanto com a
"res publica". Mas não se trata de fenômeno
puramente negativo, já que seu avesso é
constituído pela crítica radical dos impasses da formação social brasileira.
Uma vez reconhecidos o alcance e a importância do projeto, é hora de apontar o limite da iniciativa. Dos 26 artigos que compõem os três volumes, apenas os de Carlos
Sandroni e Santuza Naves apresentam alguma preocupação com o fator propriamente musical. Os demais autores, embora
reconheçam sua importância, concentram-se exclusivamente no que julgam
constituir o caráter "documental" da música popular brasileira.
Passo adiante
Nesse contexto, a MPB
importa menos por ser música do que por
fornecer um "testemunho" da história republicana. Um testemunho entre tantos
outros possíveis, diga-se de passagem. Tal
abordagem, por isso, corre o risco de tornar o objeto um simples pretexto para reflexões alheias ao que realmente interessaria -compreender em relação à MPB, ou
seja, o que a torna singularmente relevante
do ponto de vista musical.
Tal ressalva não pretende incorrer na
usual deselegância narcísica do crítico que
nunca entende que o livro do outro foi... escrito por outra pessoa. Logo, e muito naturalmente, obedece a ritmos alheios a suas
preferências. O que se trata é de colaborar
para que o projeto dê um passo adiante
-dois pra lá e dois pra cá, como no bolero.
No caso, deve-se incorporar à análise das
canções o necessário cuidado com sua parte musical.
Portanto, num provável bis, os organizadores de "Decantando a República" deveriam ampliar a roda dos convidados, incluindo músicos e pesquisadores da área.
Afinal, em sua forma mais fecunda, o debate acadêmico não deveria recordar uma roda de músicos?
A obra
"Decantando a República - Inventário Histórico e Político da Canção Popular Moderna Brasileira" (R$
24,00 cada um dos três volumes) está saindo pelas
editoras Fundação Perseu Abramo e Nova Fronteira
(tel. 0/ xx/21/2131-1146), com organização de Berenice Cavalcante, Heloisa Starling e José Eisenberg.
João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e autor de "Literatura e Cordialidade"
(Eduerj).
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