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REMIX DE AUTOR
CRIADOR DA MÚSICA CONCRETA NOS ANOS 40,
PIERRE HENRY ABRIU AS PORTAS PARA A APROPRIAÇÃO DE TRECHOS SONOROS PELO HIP HOP E TECNO
por Hermano Vianna
Vi um concerto de Pierre Henry, pela primeira vez, em Madri, no ano
passado. Já tinha experiência com
apresentações de música eletroacústica ou concreta. Estava preparado para
o que ia acontecer. A única diferença das
vezes passadas era o público: como a música eletrônica pop -que reverencia os pioneiros eruditos- se transformou em fenômeno de massa, havia uma garotada
moderninha junto dos grupos de fãs setuagenários, aqueles que têm a mesma idade
do compositor que estava se apresentando. Era uma cerimônia de gala: fazia anos
que Pierre Henry não tocava na Espanha.
Tocar é a expressão exata, mas, ao mesmo tempo, força de expressão. O ritual é
preciso, desenvolvido há mais de 50 anos.
Não há palco. O músico fica no meio da
platéia controlando a mesa de mixagem.
Caixas de som são colocadas ao redor da
sala. No início da apresentação, uma senhora, que parecia uma querida tia-avó,
surgiu do camarim com um CD, introduziu o disco delicadamente no CD player e
apertou o "play". Simples como isso.
Pierre Henry estava ao lado (por que não
é ele mesmo que põe o CD para tocar?) e
passou o concerto inteiro a mexer nos botões da mesa fazendo o som dançar para lá
e para cá. Nesse tipo de concerto musical, o
áudio sempre se movimenta no espaço,
como um móbile de Calder, como um edifício de arquitetura líqüida. E o ouvinte pode circular dentro da música como num
penetrável de Hélio Oiticica. Um dos
maiores responsáveis pelo aperfeiçoamento dessa tecnologia da escuta foi justamente Pierre Henry.
O inferno da música
Nascido em
1927, aluno de Nadia Boulanger e Olivier
Messiaen, Pierre Henry começou tocando
percussão e depois piano (incluindo piano
preparado). Desde cedo começou também
a fazer trilha sonora para o cinema. Foi trabalhando numa trilha no estúdio de uma
rádio que conheceu o engenheiro de telecomunicações Pierre Schaeffer, com quem
veio a inventar a música concreta. Em
1948, a dupla lançou o "Étude sur les Chemins de Fer" [Estudo sobre as Estradas de
Ferro], o primeiro dos "concerts de bruits"
(concertos de barulhos).
Logo depois Schaeffer e Henry fundaram
o seminal Groupes de Recherche en Musique Concrète (GRMC) [Grupos de Pesquisa de Música Concreta] e apresentaram ao
público o "Étude Pathétique" [Estudo Patético], que era uma colagem feita com o
auxílio de toca-discos, com Henry abaixando e levantando a agulha, trocando os
discos (discos de música balinesa, japonesa, discos de jazz -será que pagavam direito autoral?), e o técnico Jacques Poullin
gravando o resultado em outro disco, pois
não havia ainda gravadores de fita magnética no mercado (que possibilitariam, como veio a possibilitar, a edição dos sons
com tesoura e cola). Foi o primeiro remix
registrado. Pierre Henry seria o primeiro
dos DJs-criadores-de-música, que hoje
formam multidões?
Schaeffer não sabia se gostava do que tinha criado, se a música concreta era realmente música ou o inferno da música, tanto que parou de compor poucos anos depois. Muitos músicos, mesmo Boulez e
Stockhausen, não aprovaram o resultado.
Mas Pierre Henry, com o apoio de outros
artistas não-músicos que freqüentavam
seu estúdio (entre eles, Dubuffet, Michaux,
Buñuel, Resnais, Vian e o antropólogo Lévi-Strauss), tinha a certeza de estar no bom
caminho, no caminho do bom futuro, um
futuro que é bem parecido com o nosso
presente.
Para a música concreta, não é a linguagem musical -com suas harmonias ou
desarmonias, suas afinações e desafinações- que importa. A estrela da composição é o som, tomado na sua concretude.
Schaeffer preferia usar sons preexistentes,
tentando estabelecer seus sistemas de classificação, demonstrando suas leis, imaginando um dia poder chegar a um tratado
geral de todos os sons possíveis (chegou a
escrever o "Tratado de Objetos Musicais").
Um dos motivos para a briga com Schaeffer foi o fato de Henry resistir a classificar,
dentro das racionalíssimas regras científicas imaginadas por seu parceiro engenheiro, os sons que começou a criar.
Pierre Henry seguiu carreira "solo", e para isso foi muito ajudado por Maurice Béjart, que fez coreografias -de grande sucesso nos anos 50 e 60- para várias de
suas composições. Sua trajetória, até hoje,
revela rigor e coerência impressionantes,
mas também a incorporação de vários elementos da música pop, como em seu trabalho mais conhecido, a "Missa para o
Tempo Presente", um hit surpreendente
na França de 1968, que recentemente ganhou remixes de nomes importantes da
eletrônica das pistas de dança atuais, como
Fatboy Slim, Coldcut e Dimitri from Paris.
Adorável bagunça
Não contente em
autorizar os remixes, não tendo nenhum
medo da contaminação pela "banalização"
do pop, Pierre Henry foi além: remixou os
remixes, transformando-os em uma nova
composição, a "Fantasia Missa para o
Tempo Presente" (no disco que a lançou,
chamado apenas "01.3", o título dessa faixa
vem acompanhado -como é praxe na
música clássica- da data de sua composição, 1967/ 1997!). O compositor concreto
sabia que a parte mais substancial do trabalho realmente criativo da música contemporânea é feito com a reciclagem, reapropriação e recontextualização de outras
músicas. Por que não levar isso tudo a um
outro nível? O remix do remix do remix... E
assim até o infinito. Afinal, a música concreta, bem mais que a música eletroacústica dos estúdios de Colônia (herdeira da seriedade adorniana e serialista), é grande
responsável por essa adorável bagunça
que tomou conta de nossos ouvidos e por
técnicas de gravação em que a hibridização
e a impureza são senhoras.
Foi o hip hop, desde o final dos anos 70,
que primeiro introduziu as estratégias radicais de colagem musical, criadas inicialmente no ambiente erudito do GRMC, para massas cada vez maiores. Primeiro com
os "scratchs", arranhões sobre os discos
dos outros (ousadia suprema, muitas vezes entendida como desrespeito, mas que
na verdade sempre foi uma homenagem).
Em seguida, produtores de hip hop como
Arthur Baker, Hank Shocklee, Marley
Marl e Prince Paul desbravaram o uso do
sampler como instrumento para piratear
pedaços de outras músicas e qualquer outro tipo de sons concretos, transportando-os para faixas de novos discos.
Músicos tradicionais não gostaram da
novidade, achando, com alguma razão,
que iam perder emprego ou que deviam
ser pagos pelos "piratas" a peso de ouro,
quando não desprezavam abertamente o
que o hip hop fazia como não-música.
Hank Shocklee, produtor dos melhores e
mais influentes discos do Public Enemy,
partiu para o contra-ataque: "Não gostamos de músicos, não respeitamos os músicos... Nós entendemos melhor a música,
temos um melhor conceito de música,
aonde ela está indo, o que ela pode fazer".
Outros nomes do hip hop tentaram chegar a acordos com os músicos sampleados,
buscando um "marco regulatório" para
suas apropriações. Por exemplo: no disco
"Hello Nasty", dos Beastie Boys, aparece o
crédito para um advogado cujo trabalho
foi apenas conseguir os direitos das músicas alheias cujos pedaços foram usados
nas composições da banda. Alguns desses
pedaços são classificados como "samples",
outros como "excertos" e outros, ainda,
como "elementos". Nunca entendi a diferença legal entre os três tipos de apropriação. Mas o fato é que tal classificação não
colou. E continuamos na mesma indefinição até hoje, com o agravante de que as técnicas de apropriação e composição desenvolvidas pelo hip hop foram por sua vez
apropriadas pela quase totalidade dos estilos musicais populares contemporâneos e
se tornam cada vez mais fáceis de serem
utilizadas por todos, com vários softwares
musicais que são disponibilizados no mercado e na internet todos os dias.
O instrumento sampler e seus similares
virtuais se tornaram os principais motores
da criatividade musical contemporânea,
dando novo sentido a uma declaração que
Pierre Henry fez em 1950: "Creio que o
aparelho gravador é atualmente o melhor
instrumento do compositor que quer realmente criar de ouvido e para o ouvido".
Nossos problemas -ou delícias- musicais não terminam por aí: creio que os
ouvintes -na posse também de novos
softwares de audição- cada vez mais deixarão de lado sua posição de consumo
passivo e começarão a modificar as obras
alheias para adequá-las melhor ao seu gosto ou mesmo para se divertir à procura de
novas sonoridades. Eu mesmo, que não
possuo nenhum talento para música nem
vontade de me tornar músico, faço isso cotidianamente, por mera curiosidade.
No seminário de software livre organizado pelo Congresso Nacional em 2003, ganhei um CD demonstração que continha o
programa "Audacity" (facilmente "baixável" na internet), com o qual posso editar
qualquer música em formato MP3, colocando uma quantidade enorme de efeitos
sonoros sobre determinadas partes da
música, modificando assim inteiramente
seu resultado final. O meu remix geralmente é uma porcaria, mas uma boa brincadeira, e, de vez em quando, dá até vontade de salvá-lo para mostrar aos amigos. Estaria sendo um criminoso se agisse assim?
Provavelmente... É provável também que
as gravadoras logo inventem técnicas policiais para impedir meu novo passatempo
(e, nas mãos de gente mais talentosa do
que eu, também possível fonte de muitas
novas boas músicas no futuro).
Preocupada com essa situação de quase
guerra entre novos motores da criatividade artística e legislações caducas, a organização Creative Commons propôs uma licença de sampler, desenvolvida inicialmente por advogados brasileiros, liderados pela escola de direito da Fundação Getúlio Vargas. O ministro Gilberto Gil [Cultura] foi o primeiro músico do mundo a
relançar uma de suas canções sob essa licença, que apenas é uma forma legal de sinalizar para o planeta que determinadas
obras podem ser sampleadas para a criação de novas obras, sem que o novo criador precise pedir autorização ou pagar direitos autorais para o criador "original".
Como diz Caetano Veloso em sua "Verdade Tropical" [Cia. das Letras], "de certa
forma, o que queríamos [os tropicalistas]
fazer equivalia a "samplear" retalhos musicais e tomávamos os arranjos como ready-mades". Nada mais natural, portanto, que
um dos criadores do tropicalismo e autor
de músicas como "Refazenda" e "Refavela"
(que celebravam a recriação de tudo -e
que deveriam ter sido as músicas liberadas
para sampleadores, se não fosse a proibição da [gravadora] WEA)- se torne também um dos primeiros incentivadores da
liberação legal de suas músicas para caírem
de vez na cadeia produtiva sonora digitalizada e globalizada.
Gil vai fazer no dia 21 de setembro, no
Town Hall de Nova York, o show de lançamento dessa licença (espera-se que com a
presença do secretário-geral da ONU, Kofi
Annan, e do presidente Lula, cujo governo
está convicto da importância da defesa do
software livre) e também do próximo número da revista "Wired", que trará encartado um CD contendo músicas liberadas
para sampler, de gente -como a banda
Wilco ou a cantora Björk- que seguiu o
exemplo do ministro. Os leitores da "Wired" também ganharão de brinde o remix
de "Oslodum", a música que Gil liberou para sampler, assinado pelo DJ Dolores.
A licença para sampler da Creative Commons (ver http://creativecommons.org/
license/sampling) se chama licença "recombo", em homenagem a outros brasileiros, os que criaram o projeto re:combo de
produção musical colaborativa via internet, sobretudo. Quem faz parte do re:combo disponibiliza suas músicas na rede, de
preferência com seus vários canais de gravação separados para facilitar o reprocessamento sonoro. Qualquer pessoa pode criar
outras músicas a partir dos sons disponibilizados no site do re:combo (www.manguebit.org.br/recombo) -a única
obrigação é a de que tudo o que for criado a
partir de uma música do re:combo permaneça em aberto, pronto para novas recombinações. Portanto: aproveite, divirta-se!
Há um mundo precioso de sons à espera
de sua criatividade, facilmente e legalmente
disponível para todo tipo de manipulação.
Quem sabe, num futuro próximo, Pierre
Henry não use o seu remix em uma nova
versão, mais aberta ainda, de sua "Missa
para o Tempo Presente"? Não custa nada
sonhar.
Onde encomendar
Os CDs "Messe pour le Temps Present" [Missa para o
Tempo Presente], de Pierre Henry, e "Metamorphose
-Messe Pour Le Temps Present", que traz remixagens
da obra de Henry feitas por Fatboy Slim, Dimitri From
Paris, Coldcut e outros, podem ser encomendados
na Amazon (www.amazon.com).
Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo
Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar). Ele escreve periodicamente na série "Brasil 505
d.C.", do Mais!.
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