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"O Abismo Invertido", de Adriano Schwartz, discute "O Ano da Morte de Ricardo Reis",
de José Saramago, para tentar resgatá-lo do juízo estreito de seu próprio autor
Um temível sabotador de romances
Luiz Costa Lima
especial para a Folha
É muito raro que um crítico consiga o
resgate da consideração de um autor. A frase parecerá misteriosa para
os que não conheçam os bastidores
literários. Para quem deles não participe
será intrigante que um Prêmio Nobel recente precise de resgate. Procuro uma explicação rápida. Em entrevista de 1997, cujos trechos básicos são reproduzidos por
Alcir Pécora no prefácio a "O Abismo Invertido", de Adriano Schwartz, Saramago
afirmava que "a figura do Narrador não
existe", porque "um livro é, acima de tudo,
a expressão de (...) seu autor". Tomando
partido na discussão sobre a importância
exclusiva ou partilhada da intenção autoral, Saramago se identificava com a posição mais conservadora entre os intérpretes
-cujo paradigma é Hirsch Jr., em "Validity in Interpretation" (1967).
A decisão pareceria surpreendente pois,
ideologicamente, Saramago antes se define
como esquerdista. Mas quem terá dito que
as criaturas humanas são coerentes e uma
posição politicamente avançada se reproduza noutras frentes? Daí que Pécora esteja
certo em afirmar que a tomada de posição
de Saramago supõe o controle do romance
por quem o tenha feito. Do que decorre,
como recordará Schwartz, o "prejuízo hermenêutico" à sua obra -o que se diga sobre ela ou concordará com o autor ou contará com sua reprovação.
Intertextualidade
Suponho que para muitos isso pareça uma discussão bizantina. Mas não é. O problema da intencionalidade autoral transcende questões
de estética, pois concerne à relação entre o
agente e a linguagem. Há muitas décadas
alguém escreveu: "A fala fala", e não apenas o poeta. Também seria justo dizer: em
matéria de linguagem, não há propriedade
privada. Mas, se enveredarmos por esse
caminho, o livro de Schwartz perderá uma
das poucas possibilidades de ser comentado. Como isso não deve suceder, deixo
apenas esboçado o debate em que seu livro
se situa e me concentro em como desenvolve seu argumento.
Antes, porém, se advirta que "O Abismo
Invertido", fugindo de generalidades estéreis, não aborda a integralidade da obra de
Saramago, senão que se concentra em seu
grande romance, "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (1984). Para tanto, o crítico teve a felicidade de indagá-lo a partir de uma
única ferramenta: a intertextualidade, isto
é, a integração realizada por um texto de
formulações já presentes noutros.
No caso, a intertextualidade supõe lidar
com as odes do heterônimo Ricardo Reis,
com a vasta produção de seu autor efetivo,
Fernando Pessoa, de um poeta presente no
fundo da trama, Camões, bem como com
o romance de um certo Herbert Quain, inventado por Borges. Já a simples enumeração dos parceiros mostra que, em "O Ano
da Morte", a intertextualidade envolve a
questão do fictício e do ficcional -Reis e
Quain são seres fictícios, habitantes do território específico da ficção. A primeira habilidade do crítico esteve não só em haver
reconhecido, para seu argumento, a importância de Borges -a partir da referência explícita a Herbert Quain no romance
de Saramago- como, sem se desviar da
questão teórica sobre o estatuto do ficcional, em ater-se ao mínimo indispensável.
Só assim seu texto se tornou suficiente para uma abordagem fecunda.
De acordo com a posição assumida por
Saramago, o narrador de seu romance não
poderia ser menos do que onisciente. Assim, o fantasma de Pessoa, Reis, sua "cria",
e Camões, enquanto canonizado, teriam
de ser diminuídos, o quanto possível destroçados. Pois, acrescenta Schwartz, o narrador é onisciente e tendencioso. A operação do narrador teria êxito -e certos estariam os críticos de Saramago que consideram seus romances secundários porque
meros porta-vozes da ideologia do autor- caso não entrasse em cena o recurso
constante da inversão.
Assim, conforme o propósito do narrador de "destruir" Ricardo Reis, por haver
pregado em suas odes a indiferença ante o
mundo, o resultado seria que as ações do
protagonista terminariam por ridicularizá-lo. Mas, pelas freqüentes inversões a seu
ideal de indiferença, a conduta de Reis, estimulada pelas personagens femininas, Lídia e Marcenda, antes se caracteriza pelas
mudanças que nele se operam. Poder-se-ia
então dizer que, se o Saramago teórico se
auto-sabota, felizmente o romancista é
muito melhor que o pensador; que, por isso, concede ao protagonista uma liberdade
que o narrador coibiria.
Sutileza crítica
Minha explicação
tem, contudo, o defeito de desconsiderar
que o resgate do romance depende da sutileza de seu crítico. Acrescentar-se-ia: Reis é
obrigado a mudar porque, estando vivo, é
forçado a dar-se "conta de que "a pequenez
do real circundante" também pode ser
aterradora". Mas a explicação continua
grosseira. Não é por estar vivo que Reis se
obriga a ver o aterrador do mundo. A isso
o força o próprio território da ficção. É a
ficção que impõe ao protagonista ver o que
não vêem as pessoas apenas por estar vivas! Sem que possa aqui demonstrá-lo, é o
narrador, em suma, que tem sua onisciência comprometida, sendo, afinal, aquele
que "menos conhece sua principal personagem". E, como através do conto de Borges, a trama de "O Ano da Morte" absorve
um aspecto de romance policial, torna-se
possível a Schwartz assinalar que o narrador não só perde seu estatuto de sabe-tudo
como se torna o criminoso, que encontra
em Ricardo Reis sua vítima.
É da cadeia de inversões de que esta é a final que depende a força do romance. Contra o mau pensador que é, Saramago conta
a seu favor que tenha sabido fazer a fala falar. Para que assim se reconheça, contudo,
teve de dispor de algo fora de si: a paciente
inteligência de seu crítico.
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O
Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp). Escreve regularmente na seção "Brasil
505 d.C." (depois de Cabral), do Mais!.
O Abismo Invertido
184 págs., R$ 29,00
de Adriano Schwartz. Ed. Globo (av. Jaguaré,
1.485, 3º andar, CEP 05346-902, São Paulo,
SP, tel. 0/xx/11/3457-1545).
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