|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Macbeth e Hamlet chegam aos céus
"A Arte Sagrada de Shakespeare" interpreta a obra do
dramaturgo inglês como um meio de ascensão espiritual
Barbara Heliodora
especial para a Folha
É traduzida agora a obra de Martin
Lings, "A Arte Sagrada de Shakespeare" [ed. Polaris], agora em quarta edição na Inglaterra. O dr. Lings,
grande autoridade em religião comparada,
área na qual tem vasta obra publicada, dedicou-se também, ao longo dos anos (ele
nasceu em 1909) ao estudo e ao ensino da
obra de William Shakespeare [1564-1616].
Neste livro, em particular, o autor busca
entrelaçar seus dois grandes campos de interesse, por intermédio de uma análise, excepcionalmente pessoal, das obras do que
ele chama a maturidade de Shakespeare,
que engloba o que ele escreveu a partir de
"Hamlet", a não ser pela exceção das duas
partes de "Henrique 4º", que datam de três
ou quatro anos antes.
Quando digo que "A Arte Sagrada de
Shakespeare" é muito pessoal é porque o
livro obviamente se enquadra dentre aqueles que são redigidos com o objetivo exclusivo de comprovar uma visão individual,
preestabelecida. Se antes era chamado de
"O Segredo de Shakespeare", o título foi
agora alterado porque os editores, segundo nos informa Lings no "Prefácio", "não
deixavam transparecer que tal segredo é o
profundo significado místico de suas peças, e não apenas uma teoria sobre sua
identidade".
Preparação futura
A seguir, o erudito autor afirma que não tem dúvidas de
que "Shakespeare" seja William Shakespeare, nascido em Stratford-upon-Avon,
porém sua mais firme convicção é a de que
os valores que têm mantido vivas as obras
que examina em seu livro são valores espirituais, segundo os quais a precária caminhada desta vida não passa de uma preparação para a vida futura, depois da morte.
O prestígio de Martin Lings foi suficiente
para que pudesse merecer uma "Apresentação" do príncipe de Gales, que, a par de
respeito e elogios, admite "que o livro do
dr. Martin Lings será visto como demasiadamente esotérico por muitos". Disso não
pode haver dúvida: Lings circula com tal
facilidade pelos conceitos da teologia e de
toda espécie de esoterismos que, não raro,
é difícil acompanhar seu raciocínio como
análise objetiva da obra de Shakespeare.
No capítulo inicial, "A Arte Sagrada",
Lings discorre, de modo clamoroso, sobre
o seu preconceito contra o humanismo,
que ele encara como um empobrecimento
chocante em relação à visão medieval, a
seu ver muito mais profunda, principalmente por ter como ponto pacífico a imersão diária do homem medieval em sua religião. Considerando a arte humanista limitada e insatisfatória, considera ele que,
com o conhecimento dos melhores exemplos da arte oriental, da China, Japão ou
Índia, o ocidental teve seu horizonte ampliado, tomando consciência do pouco alcance da arte humanista; pois quem conhece "uma grande paisagem chinesa, em
que o mundo aparece como um véu de ilusão além do qual, quase visível, reside a
Realidade Infinita e Eterna... encontra dificuldade em levar a sério uma pintura como a famosa "Madona", de Rafael, ou a
"Criação", de Michelangelo".
É a partir desse apaixonado ponto de vista que realmente, com freqüência, o livro
parece preconceituoso.
Segundo Lings, o maior mérito de Shakespeare, em sua maturidade, foi ter revertido seu pensamento para a postura espiritual da Idade Media e -nas grandes tragédias assim como nos romances finais- retratar regularmente um universo que se
aproxima da visão de Dante Alighieri na
"Divina Comédia". Um problema para a
aceitação das teorias de Lings é o de ele
conseguir considerar quase que paralelos,
por exemplo, os processos de Hamlet e de
Claudio -com descidas ao Inferno, seguidas de dolorosas subidas ao Purgatório,
para alcançar, no máximo a que pode chegar o ser humano, a antevisão de um Paraíso futuro. Essa trajetória é aplicada a todos
os processos das tragédias e romances, ignorando tudo o que já foi escrito a respeito
dos mesmos.
Buscando usar as peças como expressão
de sua visão, Lings não hesita em forçar interpretações ou em imaginar até mesmo
falas inteiras, que serviriam para expressá-la. Essas, "na certa" foram omitidas pela
economia da forma dramática ou por perdas eventuais devidas à passagem do tempo. Com a constante preocupação em
identificar certos personagens como alma
e outros tantos como espírito, Lings contorce e distorce o que Shakespeare escreveu, a fim de transformar a obra do autor
que tanto admira em uma dramaturgia espiritual. Para alcançar seus fins, o exegeta
manipula como quer o que foi escrito, alegando não transparecerem suas idéias, nas
encenações, por cegueira ou erro filosófico
dos diretores.
Não pode ser posta em dúvida a erudição
de Lings na área da teologia, porém, mesmo que seja leitura interessante, é impossível não sentir que os dados estão marcados
em sua interpretação.
"Suporta e sofre"
A tradução de Mateus Soares de Azevedo e Sérgio Sampaio é
um problema à parte -e grave. Deixemos
de lado os vários deslizes de português e
também a ignorância da dupla do fato de,
desde o tempo de Gil Vicente, "Everyman"
ser chamado de "Todomundo", e não o canhestro "Qualquer Pessoa" que inventaram. Notemos aqui, apenas, os chocantes
erros de tradução do texto shakespeariano.
Damos aqui uns poucos exemplos, entre
muitos: "(...) the native hue of resolution//
Is sicklied o'er with the pale cast of
thought" (a tonalidade natural da resolução// É tornada doente pelo tom pálido do
pensamento) aparece como "será enfraquecido pelo pálido vômito do pensamento"; "Why, what a king is this?" (Ora, mas
que rei é esse?), aparece como "Por quê?
Que tipo de rei é esse?"; na famosa fala de
Macbeth, "a poor player// That struts and
frets his hour upon the stage" (que se pavoneia e agita) aparece como "suporta e sofre" sua hora no palco; e, quando o rei da
França fala de Cordélia como "this unprized precious maid", (essa menosprezada
donzela preciosa), temos "esta servidora
inestimável e preciosa".
Por esses e outros desastres semelhantes,
não podemos culpar Martin Lings, e seu
penetrante e apaixonado trabalho mereceria algo bem melhor.
Barbara Heliodora é crítica de teatro, tradutora e
autora de "Falando de Shakespeare" (Perspectiva).
A Arte Sagrada de Shakespeare
334 págs., R$ 45,00
de Martin Lings. Trad. de Mateus Soares de
Azevedo e Sérgio Sampaio. Ed. Polar (r. Fradique Coutinho, 1.459, CEP 05416-011, São
Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3816-3018).
Texto Anterior: + livros: Um temível sabotador de romances Próximo Texto: Lançamentos Índice
|