São Paulo, domingo, 30 de março de 2003 |
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+ autores Triunfo militar rápido será um álibi para o presidente Bush disciplinar com mais força os excessos emancipadores da própria sociedade norte-americana IRAQUE PRÓ E CONTRA
por Slavoj Zizek
O único bom argumento para
atacar o Iraque é que a maioria
dos iraquianos realmente é vítima de Saddam Hussein e ficaria muito feliz por se livrar dele. Ele foi
uma tal catástrofe para seu país que uma
ocupação americana de qualquer forma
pode parecer uma perspectiva muito
mais positiva para eles em relação à sobrevivência diária e a um nível de medo
muito menor. Não estamos falando aqui
em "levar a democracia ocidental ao Iraque", mas apenas em livrar-se do pesadelo chamado Saddam.
Qualquer pessoa, de um chefe de Estado a um cidadão comum, será passível de processo pelo TPI por violação sistemática de direitos humanos, incluindo assassinato, tortura, estupro e escravidão sexual; ou, como disse [o secretário-geral da ONU] Kofi Annan: "É preciso haver o reconhecimento de que somos todos membros da mesma família humana. Temos de criar novas instituições. Esta é uma delas. Este é mais um passo à frente na lenta marcha da humanidade para a civilização". No entanto, embora grupos de direitos humanos tenham saudado a criação do tribunal como a maior realização da Justiça internacional desde que os dirigentes nazistas foram julgados por um tribunal militar internacional em Nuremberg [que julgou entre 1945 e 1946 militares e políticos alemães derrotados na Segunda Guerra, por crimes contra a humanidade], o TPI ainda enfrenta firme oposição dos EUA, Rússia e China. Os EUA dizem que o tribunal infringiria sua soberania nacional e poderia levar a acusações de motivação política contra suas autoridades ou seus soldados trabalhando fora das fronteiras americanas, e o Congresso do país está até examinando uma legislação que autoriza as forças americanas a invadir Haia, onde o tribunal ficará sediado, caso os promotores acusem um cidadão americano. Desvio retórico perverso O paradoxo digno de nota aqui é que com isso os EUA rejeitaram a jurisdição de um tribunal que foi constituído com pleno apoio (e votos) dos próprios EUA! Por que então [o ex-ditador iugoslavo Slobodan] Milosevic, que hoje está em Haia, não teria o direito de afirmar que, já que os EUA negam a legalidade da jurisdição internacional do TPI, o mesmo argumento deve servir para ele? O mesmo vale para a Croácia: os EUA hoje exercem tremenda pressão sobre o governo croata para entregar ao tribunal de Haia alguns de seus generais acusados de crimes de guerra durante os conflitos na Bósnia -a reação, evidentemente, é: como podem pedir isso se eles mesmos não reconhecem a legitimidade do tribunal? Ou os cidadãos americanos são efetivamente "mais iguais que os outros"? Se simplesmente universalizarmos os princípios subjacentes à "doutrina Bush" [que estabelece as diretrizes da política externa e de segurança dos EUA], a Índia não teria o pleno direito de atacar o Paquistão? Este diretamente apóia e abriga o terror antiindiano na Caxemira e possui armas de destruição em massa (nucleares). Para não falar no direito da China de atacar Taiwan e assim por diante, com consequências imprevisíveis... Estamos conscientes de que nos encontramos no meio de uma "revolução silenciosa" na qual as regras não-escritas, que determinam a lógica internacional mais elementar, estão mudando? Os EUA censuram [o chanceler alemão] Gerhard Schroeder, um líder democraticamente eleito, por manter uma posição apoiada pela grande maioria da população alemã, além de, segundo pesquisas de meados de fevereiro, cerca de 59% da própria população americana (que se opõe ao ataque contra o Iraque sem a aprovação da ONU). Na Turquia, segundo pesquisas de opinião, 94% da população é contrária a permitir a presença de tropas americanas para a guerra contra o Iraque -onde está a democracia? Todo velho esquerdista lembra a resposta de Marx no "Manifesto Comunista" aos críticos que acusavam os comunistas de pretender minar a família, a propriedade etc.: é a própria ordem capitalista cuja dinâmica econômica está destruindo a ordem familiar tradicional (incidentalmente, um fato mais verdadeiro hoje do que na época de Marx) assim como expropriando a grande maioria da população. Na mesma linha, não são exatamente aqueles que hoje posam como defensores globais da democracia que a estão solapando de fato? Em um desvio retórico perverso, quando os líderes pró-guerra são confrontados com o fato brutal de que sua política está fora de sintonia com a maioria da população, eles recorrem à sabedoria comum de que "um verdadeiro líder lidera, não segue" -e isso vem de líderes geralmente obcecados pelas pesquisas de opinião... Os verdadeiros perigos são os de longo prazo. Em que reside talvez o maior perigo da perspectiva de ocupação americana no Iraque? O atual regime do Iraque é em última instância nacionalista e secular, sem ligação com o populismo fundamentalista muçulmano -é evidente que Saddam apenas flerta superficialmente com o consentimento muçulmano pan-árabe. Como seu passado demonstra claramente, ele é um governante pragmático que anseia por poder e que muda de alianças conforme seus objetivos -primeiramente contra o Irã, para tomar seus campos de petróleo, depois contra o Kuait, pelo mesmo motivo, atraindo contra si mesmo uma coalizão pan-árabe aliada dos EUA; o que Saddam não é é um fundamentalista obcecado pelo "grande Satã", disposto a explodir o mundo apenas para derrotá-lo. No entanto o que pode surgir em consequência da ocupação americana é precisamente um movimento muçulmano realmente fundamentalista e antiamericano, diretamente ligado a esses movimentos em outros países árabes ou países com presença muçulmana. Podemos supor que os EUA estejam conscientes de que a era de Saddam e seu regime não-fundamentalista está chegando ao fim e de que o ataque ao Iraque provavelmente é concebido como um ataque preventivo muito mais radical -não contra Saddam, mas contra o principal candidato à sucessão política de Saddam, um regime islâmico verdadeiramente fundamentalista. Dessa maneira, o círculo vicioso da intervenção americana se torna ainda mais complexo: o perigo é que a própria intervenção americana contribua para o surgimento do que os EUA mais temem -uma grande frente unida muçulmana antiamericana. É o primeiro caso de ocupação direta americana em um grande e importante país árabe -como isso não poderia gerar uma reação de ódio universal? Já podemos imaginar milhares de jovens sonhando em tornar-se homens-bomba e como isso obrigará o governo americano a impor um estado de emergência em alerta permanente... No entanto a essa altura não podemos resistir a uma tentação ligeiramente paranóica. E se as pessoas ao redor de Bush sabem disso? E se o tal "dano colateral" for o verdadeiro objetivo de toda a operação? E se o verdadeiro alvo da "guerra ao terror" for a própria sociedade americana, isto é, o disciplinamento de seus excessos emancipadores? Em 5 de março passado, no programa "Buchanan & Press" da rede NBC, foi mostrada na TV a foto do recém-capturado Khalid Shaikh Mohammed, o "terceiro homem da Al Qaeda" -um rosto maligno de bigodes, usando uma camisola de prisioneiro não identificada, entreaberta e com algo que se pareciam com hematomas não muito discerníveis (sugestão de que ele já havia sido torturado?), enquanto a voz rápida de Pat Buchanan perguntava: "Esse homem, que sabe todos os nomes e todos os planos detalhados de futuros ataques terroristas aos EUA, deveria ser torturado, para podermos arrancar tudo isso dele?". "Sessões de ódio" O horror disso era que a foto, com seus detalhes, já sugeria a resposta -não admira que a reação de outros comentaristas e ligações de espectadores tenha sido um avassalador "Sim!" -o que nos deixa nostálgicos dos bons e velhos tempos da guerra colonial na Argélia, quando a tortura praticada pelo Exército francês era um segredo sujo... Efetivamente, isso não era quase a concretização do que George Orwell imaginou em "1984", em sua visão das "sessões de ódio", nas quais exibem fotos dos traidores dos cidadãos, que devem vaiá-los e insultá-los? E a história continua: um dia depois, em outra TV, a Fox, um comentarista disse que seria permitido fazer qualquer coisa com esse prisioneiro, não apenas privá-lo do sono, mas quebrar seus dedos etc. etc. porque ele é "um pedaço de lixo humano, sem qualquer direito". Essa é a verdadeira catástrofe: que essas declarações públicas sejam possíveis hoje. Devemos portanto estar muito atentos para não lutar falsas batalhas: os debates sobre quão ruim é Saddam, mesmo sobre quanto custará a guerra etc., são debates falsos. O enfoque deveria ser para o que efetivamente acontece em nossas sociedades, sobre que tipo de sociedade está surgindo em consequência da "guerra ao terror". Em vez de falar sobre agendas conspiratórias ocultas, deveríamos mudar o enfoque para o que está acontecendo, que tipo de mudanças está ocorrendo aqui e agora. O resultado final da guerra será uma alteração de nossa ordem política. O verdadeiro perigo pode ser melhor exemplificado pelo verdadeiro papel da direita populista na Europa: introduzir certos temas (a ameaça estrangeira, a necessidade de limitar a imigração etc.), que depois foram silenciosamente adotados não apenas pelos partidos conservadores, mas até pela política de fato dos governos "socialistas". Hoje a necessidade de "regulamentar" a situação de imigrantes etc. faz parte do consenso da corrente dominante: Le Pen realmente abordou e explorou problemas reais que preocupam as pessoas. Somos quase tentados a dizer que, se não houvesse Le Pen na França, ele precisaria ter sido inventado: é a pessoa perfeita a quem amamos odiar, e esse ódio garante o amplo "pacto democrático" liberal, a identificação patética com os valores democráticos de tolerância e respeito à diversidade -no entanto, depois de gritar "horrível! Que obscuro e incivilizado! Totalmente inaceitável! Uma ameaça a nossos valores democráticos básicos!", os liberais ultrajados passaram a agir como um "Le Pen de face humana", a fazer a mesma coisa de modo mais "civilizado", seguindo as linhas do "mas os populistas racistas estão manipulando as preocupações legítimas das pessoas comuns, então precisamos tomar certas medidas!"... Temos realmente aqui uma espécie de "negação da negação" hegeliana pervertida: em uma primeira negação, a direita populista perturba o consenso liberal asséptico ao dar voz à dissensão apaixonada, argumentando claramente contra a "ameaça estrangeira"; em uma segunda negação, o centro democrático "decente", no próprio gesto de pateticamente rejeitar essa direita populista, incorpora sua mensagem de maneira "civilizada" -enquanto isso, todo o campo de fundo das "regras não escritas" já mudou tanto que ninguém nem sequer percebe, e todo mundo fica aliviado de que a ameaça antidemocrática tenha terminado. E o verdadeiro perigo é que algo semelhante acontecerá com a "guerra ao terror": "extremistas" como [o ultraconservador secretário da Justiça norte-americano] John Ashcroft serão descartados, mas seu legado permanecerá, imperceptivelmente entrelaçado no tecido ético invisível de nossas sociedades. Sua derrota será seu triunfo final: eles não serão mais necessários, já que sua mensagem será incorporada à corrente dominante. Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "O Mais Sublime dos Histéricos" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves. Texto Anterior: Leia + Próximo Texto: + livros: Símbolos e suspeitas Índice |
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