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Um clássico das ciências sociais, "Cultura e Razão Prática", do americano Marshall Sahlins, é relançado no Brasil
SÍMBOLOS E SUSPEITAS
Caio Caramico Soares
da Redação
O mármore é um material "rebelde", que não permite ao escultor fazer o que quiser. Mas
cabe ao artista decidir se a estátua será a de um cavaleiro montado
contemplando suas vitórias ou de Moisés contemplando os pecados de seu
povo.
É na simplicidade dessa metáfora que
o antropólogo americano Marshall Sahlins, já ao final de "Cultura e Razão
Prática" (1976), resume uma sofisticada
discussão sobre o que diferencia, de um
lado, a cultura em relação à natureza, e,
de outro, a criação simbólica em relação
às imposições da esfera econômica.
O livro, ora relançado no Brasil, é um
clássico das ciências sociais - assim
como "Ilhas de História", do mesmo
autor. Fugindo à modéstia das pesquisas etnológicas isoladas, restritas a "tribos" e a conclusões pontuais, este livro
relê, combate ou articula uma vasta gama de escolas teóricas, de Boas a Lévi-Strauss. Também é pioneiro em trazer a
antropologia, habitualmente focada em
povos "primitivos", para o centro do
debate sobre a sociedade capitalista.
O grande espectro que paira sobre a
obra é a figura de Karl Marx. É com suas
idéias que Sahlins polemiza quase todo
o tempo, explicitamente ou não. É preciso ressalvar que o professor da Universidade de Chicago mostra ter por
Marx grande admiração.
Para ele, o autor de "O Capital" era
dotado de grande argúcia antropológica avant la lettre, manifesta em teses como a de que "a tradição dos mortos permanece como um pesadelo na cabeça
dos vivos" -enunciado que intuiria o
peso coercitivo das "estruturas" na definição da história. Marx também teria sido altamente consciente acerca do estilo
de reprodução estereotipada -ligada
ao "eterno retorno" mítico- característico das sociedades "primitivas" e
dos riscos que elas correm quando expostas à "sede do dinheiro".
Para além desses insights pessoais,
porém, o materialismo histórico legado
por Marx padeceria de um problema
fundamental: o de ser apenas um espelho da representação que a sociedade
burguesa faz de si mesma. Como a dialética de Hegel, o utilitarismo burguês
teria sido revirado pela crítica marxista,
mas "ratificado" em seus pressupostos
básicos, como o de que, na sociedade
capitalista, o dinheiro a tudo governa
-generalidade, aliás, que reaparece em
novas vestes, hoje em dia, no argumento comum de que o interesse por petróleo é "a verdadeira razão" da guerra no
Iraque. Essa "constatação" equivaleria,
para usar um exemplo do livro, ao simplismo dos que vêem a publicidade como "nada mais do que" a fachada alegórica que esconde um único "segredo": o
interesse de vender.
O que Sahlins tenta mostrar é que a
economia é em si mesma uma atividade
simbólica, não uma infra-estrutura
"real", independente e determinante
das outras esferas sociais. Ao falar em
"símbolos", logo vem à mente o risco de
uma visão idealizada -senão espiritualizada-, que apaga as contradições, as
lutas de poder, os interesses materiais.
Não é o caso de Sahlins. Ele não nega a
força e a extensão que os ditames da
economia tomam na definição dos rumos da política, dos costumes e do cotidiano na sociedade moderna. Mas é justamente por ser um "meio de vida total"
que a produção e o consumo capitalista
são galgados à condição de operador
simbólico central, equivalente, diz ele,
ao que as relações de parentesco representavam para as sociedades tribais.
A procura de lucro, pelo produtor, e
aquisição dos bens mais úteis, pelo consumidor, aparecem, assim, não como a
realização da "natureza humana" (versão liberal) ou distorção imposta pelos
determinismos do sistema (versão marxista). Trata-se mais -e nisso Sahlins
pode alimentar os atuais estudos sobre
"estilos de vida"- de uma maneira de
materializar diferenças. Não por acaso
os dias "úteis" e de ócio, roupas para estar em casa ou fora, a "adolescência" e a
idade "adulta" são ritos, ritmos do tempo e divisões do espaço tão marcados
entre nós pela dimensão do trabalho.
Sahlins diz que a importância do símbolo na vida cotidiana, mesmo em sociedades "racionalizadas" como a nossa, vem à tona graças não só a especulações abstratas, mas também pela observação das práticas reais. E demonstra isso nas partes mais divertidas do livro,
em que comenta as regras de vestuário e
de alimentação nos Estados Unidos.
Ele cita, por exemplo, a frase da Rainha de Copas de Lewis Carroll - "não é
fino mandar cortar alguém a quem você
foi apresentado"- para ilustrar a regra
de que os bichos mais "humanizados",
caso, naquele país, do cachorro e do cavalo, são também os menos "aptos" ao
consumo, e não por razões nutricionais
ou econômicas.
Deixando claro que a via simbólica
não é, para ele, "pacificação" escapista, e
sim uma possível arma a mais de luta
contra as ilusões do economicismo, Sahlins conclui como começou: voltando
a Marx, de quem extrai uma formulação
exemplar do "totemismo burguês": fazendo as pessoas "se relacionarem como coisas", nossa sociedade, segundo
Sahlins, não quebra, mas inverte, o sortilégio primitivo que levava as coisas a se
comportar como pessoas.
Para encerrar com outra "oposição binária" ao gosto dos estruturalistas: se os
"mestres da suspeita" Freud e Marx
desmascararam o interesse por detrás
do símbolo, a força crítica do programa
formulado em "Cultura e Razão Prática" parece estar no contrário: desvendar
o símbolo por detrás do interesse.
Cultura e Razão Prática
232 págs., R$ 26,00 de Marshall Sahlins. Trad. de Sérgio Tadeu de
Niemayer Lamarão. Ed. Jorge Zahar (r. México,
31, sobreloja, CEP 20031-144, Rio de Janeiro, RJ,
tel. 0/xx/21/ 2240-0226).
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