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PONTO DE FUGA
Liberdade, liberdade
Jorge Coli
Um Tio Sam enorme, jovem, musculoso, de sorriso brilhante. A barbicha esvoaça ao vento; seu colete e suas
calças retomam as listas e estrelas da bandeira norte-americana. No céu, uma porção de aviões, no chão, um
mundo de carros. No alto, à direita, a inscrição: "Roll up
your sleeves, America!" (Arregace as mangas, América). O jovem Tio Sam tem a manga de um braço levantada. Mas tem também um garrote (de listas vermelhas)
e recebe na veia o bico da mangueira de uma bomba de
gasolina.
A charge dessa América dopada pelo petróleo é de Art
Spiegelman. Ele obteve, em 1991, o Prêmio Pulitzer, por
"Maus", um álbum de quadrinhos (editado no Brasil
pela Brasiliense, hoje esgotado). Spiegelman é judeu,
seu pai foi um sobrevivente de Auschwitz: este é o ponto
de partida para "Maus", em que onde os nazistas são
gatos e os judeus, camundongos. Trabalhou também,
durante dez anos, na "New Yorker", para a qual concebeu capas geniais. Embora sua mulher continue como
editora de arte da revista, Spiegelman, há algumas semanas, pediu demissão. "The New Yorker", que se destina a um público intelectual e sofisticado, recusou-se a
publicar sua nova série "In the Shadow of No Tower" (À
Sombra das Torres Ausentes), revelando um fundo
conformista.
Spiegelman diz que, hoje, mesmo uma "pequena discordância tranquila" à política de Bush se tornou quase
impossível nos EUA. Sua série sai na alemã "Die Zeit" e
em "Forward", pequena revista judaica americana.
Palavras - Declarações de Spiegelman à revista francesa
"Télérama": "... a eleição de Bush, esse golpe de Estado
tranquilo. Depois, vivemos num sonho ruim. Ao invés
de termos um presidente transformado em palhaço pelo "Saturday Night Live", temos, na Casa Branca, um
palhaço que tenta agir como presidente. (...) A administração Bush preveniu: "Todos os que não estão conosco,
estão fora do jogo". Isso é a última coisa que a mídia
quer, estar "fora do jogo". Minha ambição de artista é, ao
contrário, não me conformar".
Teen - Em DVD, o filme coreano "Whasango" (título
em inglês "Volcano High"; Media Asia/Megastar), dirigido por Kim Tae-Kium, é uma comédia de adolescentes em colégio, um delírio de combates marciais e um
filme de antecipação. Não se leva a sério e brota com elegância natural: está, assim, equidistante de "Matrix" e
de "Porky's". Tudo se encontra em equilíbrio: a leveza
que ri de si mesma; os combates, que lembram duelos
do Velho Oeste sem pistolas; o clima escolar onde professores e alunos possuem superpoderes, lutando entre
si pela hegemonia; o sentimentalismo contido, numa
história de amor que ocorre com poucos gestos -embora alguns sejam hilariantes- e alguns sorrisos.
É uma espécie de mangá transfigurado por um diretor que insiste no absurdo e na graça, mas que se torna
verossímil e convincente. Há uma descrição muito precisa da escola, universo fechado sobre si, um pouco decrépito e doentio. Em contraste, sobressai a aparência
requintada dos jovens, com seus penteados coloridos e
surpreendentes. O vínculo entre música e imagem
energiza as situações, mais importantes que a trama sumária, ridicularizada no final.
Sobretudo, "Whasango", considerando todas as suas
referências e raízes, oferece uma impressão de novo,
um tom, uma respiração despretensiosa, mas cheia de
invenção. Sem contar que a idéia de professores e alunos com poderes sobrenaturais sugere o inferno em que
se tornariam as escolas, se isso fosse verdade.
Medos - "As Horas", de Stephen Daldry, possui certamente qualidades. No entanto o sentimento angustioso
da existência e da morte, sobre o qual ele repousa, é
ocultado pelo caráter melodramático das situações.
Elas podem funcionar e comover. Mas basta pensar em
Virginia Woolf, cuja comparação se impõe, já que o filme entrecruza sua vida e obra, ou evocar Ingmar Bergman para perceber a distância que vai de uma meditação implacável e sem saída à lágrima mais fácil, que redime e alivia.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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