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Eduardo Giannetti da Fonseca lembra a influência de Nagel em sua formação e diz
que ele pode ajudar os filósofos brasileiros a superarem seu "vício ocupacional"
Humildade analítica, arrogância dialética
Caio Caramico Soares
free-lance para a Folha
Em enquete do caderno Mais! [publicada em 11/4/1999], que pedia a
alguns dos principais intelectuais
brasileiros que listassem o que seriam para eles os dez mais importantes
livros do século 20, Eduardo Giannetti da
Fonseca pôs "Visão a partir de Lugar Nenhum", de Thomas Nagel, no topo, à
frente de clássicos como "O Mal-Estar na
Civilização", de Freud, e "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de
Max Weber.
Como mostra na entrevista a seguir, os
motivos do economista e professor do
Ibmec -que fez a revisão técnica da edição brasileira da obra- para essa escolha são muitos.
Por que "Visão a partir de Lugar Nenhum"
é o livro mais importante do século 20?
Foi o livro, dentre aqueles editados no
século 20, que mais me influenciou, o
livro mais importante em minha formação. As questões mais interessantes da epistemologia, da ética, da filosofia da mente, da linguagem, da metafísica, da filosofia política se prestam a uma elucidação a partir desse
conflito entre o ponto de vista interno
do sujeito e o ponto de vista da objetividade, ou seja, a tentativa de se ver de
fora, a partir de um ponto de vista
neutro, impessoal.
Acho que ele conseguiu unificar as
grandes preocupações da filosofia a
partir de um fio subjacente, que é essa
dualidade que ele elabora e que lhe
permite cortar transversalmente os
mais diversos temas. Nagel é um dos
autores com os quais, quando o leio,
me sinto diminuído, porque ele me
parece de uma clareza, consistência,
rigor, elegância, que eu jamais vou alcançar, ele realmente me oprime, mas
ao mesmo tempo me instiga, me provoca a ser melhor.
Ele me dá essa clara sensação de
quanto me falta como pensador e autor. Uma mistura de opressão e provocação intelectual. Acho Nagel o
mais importante filósofo vivo hoje no
mundo. Na tradição analítica, que é a
de Nagel, diferentemente da tradição
dialética (mais continental), a questão
importa mais do que a história da
idéia. Ele, por exemplo, escreveu um
livro inteiro de introdução à filosofia
["What Does It All Mean", lançado
no Brasil pela editora Martins Fontes
com o título de "Uma Breve Introdução à Filosofia"] sem se referir a nenhum filósofo, porque ele quer mostrar para o estudante a importância
do problema filosófico [em si]. Acho
essa abordagem magnífica, essa é a
maneira de fazer filosofia, senão você
descamba para o que é o vício ocupacional do filósofo brasileiro, que é a
exposição sedentária de doutrinas
alheias, para usar a expressão de Mário de Andrade. O que Nagel faz é o
inverso disso. O problema tem precedência sobre a história das idéias.
O sr. diz que o lançamento de "Visão a
partir de Lugar Nenhum" pode marcar
uma boa oportunidade para "termos uma
filosofia mais esclarecida no Brasil". A seu
ver, quais são as principais carências intelectuais nacionais que esse livro pode ajudar a sanar?
Sobretudo uma filosofia que se preocupe mais com problemas do que
com reconstruções historiográficas.
Também a questão da clareza; o filósofo tem que ser claro e saber convencer quanto à relevância dos problemas que ele traz. Uma coisa que Nagel
faz -e que acho que pode inspirar
um jovem a se preocupar com filosofia- é mostrar que os problemas da
filosofia são pertinentes, são coisas
que qualquer pessoa lúcida pode perceber por si mesma e começar a pensar, porque são coisas que importam.
Para mim, como estudioso de economia, a filosofia relevante para as ciências é essa [da linha analítica], e não a
continental, dialética. E há muita empáfia, muita confusão entre profundidade e obscuridade. Acho que a história da filosofia tem seu papel, é muito
importante que seja feita, mas isso é
diferente de filosofia propriamente
dita, o historiador de idéias quer resgatar o sentido original de uma obra
em seu contexto intelectual e prático.
Agora, o que nos falta no Brasil é o
filósofo que tenha capacidade de enfrentar problemas filosóficos e de
pensar a partir de problemas, e não de
uma reconstrução historiográfica.
Como se deu seu encontro com o livro?
Eu estudei filosofia na graduação
[Giannetti se formou em ciências sociais e economia na USP], mas em
meados dos anos 70, no Brasil, filosofia era sinônimo de filosofia continental européia, franco-germânica. Estudei muito Marx e, para entender
Marx, Hegel. Eu era marxista, na minha geração não havia como não ser
marxista, todos nós disputávamos
para saber qual era o verdadeiro e ortodoxo marxista. Ao ir para a Inglaterra, li três vezes mais filosofia do
que economia, mas percebi que, todos os autores que eu tinha estudado
aqui na minha juventude, era como se
não existissem. A própria Escola de
Frankfurt, o objeto de minha grande
admiração então, não era lá nem considerada filosofia, mas sim sociologia.
Lá havia uma outra tradição, que eu
desconhecia quase por completo, que
era a filosofia analítica. Para justificar
minha existência acadêmica lá, tive
que recomeçar do zero e começar a
estudar, aprender e até participar dessa abordagem. Descobri Nagel nessa
época, mas o li com mais afinco depois de escrever "Vícios Privados, Benefícios Públicos" (1993). A presença
de Nagel já é muito forte em "Auto-Engano" e em "Felicidade" [ambos
lançados pela Cia. das Letras].
É correto dizer que Nagel preenche, em
seu desenvolvimento intelectual pessoal,
um papel estratégico de intermediação
entre o rigor argumentativo da filosofia
analítica e os grandes temas da tradição
crítico-dialética (em que o sr. se criou), até
mesmo do romantismo, por exemplo
quando ele denuncia os excessos da ciência moderna?
Os filósofos dialéticos, da tradição hegeliana, e o próprio Marx olham para
a ciência com uma arrogância, um ar
de superioridade, como se os cientistas fossem meros empiristas, positivistas. Hegel, na "Filosofia da Natureza", se dá ares de que entende mais de
física do que Newton. Na tradição
analítica, olha-se com humildade para a ciência e busca-se aprender o que
a ciência pode oferecer para a reflexão
filosófica. O filósofo não se põe num
pedestal olhando para os meros cientistas como se fossem ratinhos de laboratório que não sabem muito bem
o que estão fazendo e pensando.
Nagel de novo aí tem uma posição
muito interessante. Ao mesmo tempo
em que respeita enormemente as
conquistas do pensamento científico,
ele mostra os seus limites, o que nós
podemos esperar da ciência. E ele acaba mostrando que as questões que
mais nos importam a ciência jamais
nos responderá, são as perguntas
acerca do sentido, do bem, do que importa. Mas não se coloca naquela posição frankfurtiana de olhar para os
cientistas como se fossem bebês incapazes de dar um passo sem tropeçar.
Mas Nagel denuncia o "cientismo"...
Sim, ele critica o cientismo, isto é,
transformar a ciência em fé e dogma,
a idéia de que a ciência vai dar respostas para as perguntas da filosofia. Eu
resumiria a posição de Nagel dizendo
que não há nada mais irracional do
que ignorar os limites da racionalidade. Há uma interioridade no mental
que é diferente da interioridade do cérebro dentro da caixa craniana. E a
ciência é constitutivamente incapacitada para lidar com essa interioridade
do sujeito. Esse é o irredutível da experiência humana. E ele é o que mais
importa, é nesse plano que nossa vida
transcorre. Ele dá até um exemplo,
em "Uma Breve Introdução à Filosofia": imagine uma pessoa comendo
chocolate -e tudo o que o chocolate
significa para ela, em termos de ressonâncias, de memória, de associações
subjetivas- e um cientista que queira ter uma "visão científica" do cérebro sob o estímulo do chocolate.
Imagine se um cientista consegue
abrir, lamber esse cérebro e sentir o
gosto de chocolate; o gosto de chocolate que ele vai sentir não é o mesmo
da pessoa, é apenas um gosto de chocolate que o cérebro da pessoa tem
enquanto ela como chocolate. E há
um poema de um heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos
["Tabacaria"], que diz: "Come chocolates, pequena;/ Come chocolates!/
Olha que não há mais metafísica no
mundo senão chocolates./(...) Pudesse eu comer chocolates com a mesma
verdade com que comes!". É exatamente a mesma coisa que Nagel diz!
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