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+ sociedade
Para ensaísta alemão, a cultura popular norte-americana deve ser vista à luz de um longo processo de individualização
Promessa de modernidade
Winfried Fluck
especial para a Folha
O espectro da "americanização"
assombra o mundo. Suas consequências são demonizadas
por toda a parte, às vezes indo
longe a ponto de utilizar a metáfora do
(devo dizer norte-americano) filme de
ficção científica "Invasores de Corpos"
[de Don Siegel (1956)", no qual alienígenas hostis imperceptivelmente tomam
controle de nossos corpos e de nossas
mentes. Mas a retórica hiperbólica a respeito de invasões deixa passar a complexidade da mudança cultural que ocorre à
nossa volta.
Nenhum lado no debate sobre americanização oferece uma explicação convincente para o fenômeno. Aqueles que
argumentam que a americanização é
uma forma virulenta de "imperialismo
cultural" aparentemente a vêem como
um produto de uma crescente dominação por parte dos negócios de mídia norte-americanos. Entretanto muitas corporações que são gigantes culturais -a
japonesa Sony, a canadense Seagram, o
império de Rupert Murdoch ou a Bertelsmann, da Alemanha- não são mais
norte-americanas, ainda que promovam
modelos culturais norte-americanos.
Mesmo que as mídias fossem norte-americanas, é fácil demais dizer que os
consumidores de cultura mundo afora
não são mais do que barro nas mãos de
habilidosos especialistas em marketing.
Faz mais sentido assumir que há elementos de gratificação social, psíquica e estética que explicam a ressonância dos modelos culturais norte-americanos e provêm para a sua utilidade comercial.
O outro lado no debate sobre americanização enfatiza o poder liberador e antiautoritário da cultura norte-americana
popular. Há momentos em que isso é
adequado: na Alemanha dos anos 50,
por exemplo, a cultura jovem norte-americana tinha um forte componente
antiautoritário que ajudou a minar o autoritarismo e contribuiu para o processo
de democratização pós-guerra.
Apenas raramente, entretanto, a cultura popular inspirada na norte-americana
possui explicitamente essa dimensão.
Mais frequentemente, seus ataques contra a autoridade tomam a forma de provocações premeditadas ou representações cada vez mais desinibidas e gráficas
de violência. Outras vezes, o apelo refrescantemente antiautoritário de programas como "Os Simpsons" é explorado
comercialmente para fortalecer impérios
da mídia globais, como o de Rupert Murdoch. Em outras palavras, o antiautoritarismo também não é toda a história.
Precisamos olhar com mais nuanças a
marcha adiante da cultura norte-americana, em vez de demonizá-la como uma
forma crua de imperialismo ou meramente celebrar o seu potencial libertador. Em particular, a cultura popular
norte-americana deve ser vista sob a luz
do extenso processo histórico de modernização cultural.
No passado a cultura se encontrava ligada a privilégios e riqueza. Até o século
18, livros eram comparativamente caros;
sua posse era estritamente limitada às
classes proprietárias. Além disso, certos
fundamentos educacionais (como um
conhecimento de latim ou grego) eram
necessários para compreender a maioria
dos objetos culturais.
"Cultura popular" é nossa palavra para
uma forma de cultura que gradualmente
aboliu essas restrições. Sua manifestação
mais primitiva, o romance, auxiliada pelas novas tecnologias de impressão, criou
um mercado que permitia um acesso
muito mais amplo à literatura. Conhecimento de métrica ou de poetas clássicos
não era mais necessário. O romance tornou-se a literatura da classe média, e o
"dime novel", "romance abreviado" que
custava dez centavos e era cortado para
caber em uma revista, expandiu a leitura
para os estratos inferiores da sociedade,
em especial aos leitores adolescentes.
O desenvolvimento de uma "cultura de
entretenimento" por volta da virada para
o século 20, incluindo o teatro de variedades, parques de diversão, uma mania
de dança disparada pela domesticação
de danças negras provenientes das
"plantations" e o cinema mudo, reduziu
ainda mais os pré-requisitos para o entendimento cultural. A invenção do rádio e da TV aumentou ainda mais a audiência dessa nova cultura "de massa", e
a mudança para uma priorização de filmes e música criou uma linguagem "universal", não limitada a uma comunidade
em particular.
Por uma série de motivos, os EUA estavam à frente dessa revolução cultural.
Devido à sua composição multiétnica e
multicultural, especialmente nos anos de
formação da moderna cultura de entretenimento, por volta de 1900, a cultura
popular norte-americana encarou o desafio de um mercado que antecipava o
atual mercado global, em uma escala
menor. Isso levou ao desenvolvimento
de modos de atuação amplamente compreensíveis e não-verbais, contando preferivelmente com formas de expressão
visuais e auditivas. Antes que a americanização de outras sociedades pudesse
ocorrer, a própria cultura norte-americana teve de ser "americanizada".
Qual é o sentido e o significado cultural
desse processo de "americanização"? A
constante redução de pré-requisitos para
a compreensão da cultura pode confirmar a visão de que os consumidores da
cultura de massa são passivos. A música
popular, em particular, é altamente eficaz em se insinuar ao ouvinte de maneira
quase imperceptível; não é necessário
nenhum processamento intelectual de
seu conteúdo, porque ela não tem pretensão de informar. Em vez disso, estados de ânimo são criados por efeito subliminar.
A forma característica pela qual a música ativa a imaginação é por meio de
curtas evocações de imagens fora de contexto ou por uma difusa sensação de falta
de laços, sem que ambos os modos precisem ser integrados em algum contexto
significativo. Ouvintes de música popular não precisam "merecer" sua experiência estética por meio da participação.
Ao contrário de formas visuais de expressão cultural anteriores, incluindo os
filmes, não há mais uma necessidade de
continuidade no fluxo de imagens; ao
contrário do que ocorre em um romance, não é necessária uma tradução mental, porque o efeito sensual da música
cria associações que não são formadas
por narrativa, mas sim por ânimos.
O desenvolvimento da cultura popular
a partir do romance, passando pela imagem, até o triunfo da música popular e a
"descentralizada" heterogeneidade da
televisão criou formas de expressão cultural que são singularmente úteis para os
propósitos de auto-expansão imaginária
e autorização de si próprio. O resultado é
uma crescente separação entre elementos expressivos e contextos morais, sociais e até mesmo narrativos. Eis aqui o
triunfo dos "ânimos sobre as morais". A
americanização de fato é levada pela promessa de aumento da auto-realização
imaginária para indivíduos que são libertos dos laços de normas sociais e de
tradições culturais.
Americanização, então, não pode ser
vista como uma tomada de poder engendrada tácita e ocultamente, mas como
um processo no qual a individualização é
a força motriz. Esse processo é mais
avançado nos EUA por uma série de razões. A promessa de uma forma de individualização particular provê a explicação sobre por que a cultura popular norte-americana encontra tanta ressonância
em outras sociedades, nas quais ela se inseriu quase sem encontrar resistência
(levada principalmente por uma geração
jovem que tentava fugir da tradição).
A americanização cultural é portanto
parte de um processo de modernização.
A americanização não é uma forma de
imperialismo cultural, mas a encarnação
da promessa da modernidade, de auto-realização indolor para cada indivíduo,
em contraste com as demandas feitas
por conceitos mais tradicionais de
emancipação.
A globalização, que frequentemente
aparece como o triunfo da padronização
cultural, na realidade mina a padronização. Nenhuma única cultura nacional é a
força motriz, em vez disso a globalização
é impulsionada por um individualismo
incansável baseado no crescente repertório de símbolos de massa. Então, não estamos sendo americanizados. Nós "americanizamos" a nós mesmos.
Winfried Fluck é professor de cultura na Universidade Livre de Berlim. Copyright do Project Syndicate and Instituto para Ciências Humanas.
Tradução de Victor Aiello Tsu.
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