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Na coletânea "Nu e Vesti do", antropólogos revela m como, para milhares d e
brasileiros, o sentido da vida cada vez mais se red uz à produção do físico i deal
Com que corpo eu vou?
Maria Rita Kehl
especial para a Folha
"O corpo tem alguém como recheio"
Arnaldo Antunes, tema para o grupo "Corpo", em 2000
Que corpo você está usando ultimamente? Que corpo está representando você no mercado
das trocas imaginárias, que
imagem você tem oferecido ao olhar
alheio para garantir seu lugar no palco
das visibilidades em que se transformou
o espaço público no Brasil? Fique atento,
pois o corpo que você usa e ostenta vai
dizer quem você é. Pode determinar
oportunidades de trabalho. Pode significar a chance de uma rápida ascensão social. Acima de tudo, o corpo que você
veste, preparado cuidadosamente à custa de muita ginástica e dieta, aperfeiçoado por meio de modernas intervenções
cirúrgicas e bioquímicas, o corpo que resume praticamente tudo o que restou do
seu ser é a primeira condição para que
você seja feliz.
Não porque ele seja, o corpo, a sede
pulsante da vida biológica. Não porque
possua uma vasta superfície sensível ao
prazer do toque -a pele, esse invólucro
tenso que protege o trabalho silencioso
dos órgãos. Não pela alegria com que experimentamos os apetites, os impulsos,
as excitações, a intensa e contínua troca
que o corpo efetua com o mundo. O corpo-imagem que você apresenta ao espelho da sociedade vai determinar sua felicidade não por despertar o desejo ou o
amor de alguém, mas por constituir o
objeto privilegiado do seu amor próprio:
a tão propalada auto-estima, a que se reduziram todas as questões subjetivas na
cultura do narcisismo.
Nesses termos, o corpo é ao mesmo
tempo o principal objeto de investimento do amor narcísico e a imagem oferecida aos outros -promovida, nas últimas décadas,
ao mais fiel indicador da
verdade do sujeito, da
qual depende a aceitação
e a inclusão social. O corpo é um escravo que devemos submeter à rigorosa
disciplina da indústria da
forma (enganosamente chamada de indústria da saúde) e um senhor ao qual
sacrificamos nosso tempo, nossos prazeres, nossos investimentos e o que sobra
de nossas suadas economias.
"Nu e Vestido" é um livro recém-editado pela Record, reunindo estudos de dez
antropólogos brasileiros e estrangeiros a
respeito da cultura do corpo no Rio de
Janeiro, hoje. O título, que remete intencionalmente ao famoso estudo de Claude Lévi-Strauss, "O Cru e o Cozido", revela o interesse dos autores pelo corpo
como um complexo conjunto de signos
classificatórios que indicam as diferenças sociais na cultura do Rio de Janeiro, o que vale também para outras culturas
urbanas no Brasil. O grande interesse do
livro, a meu ver, são os dados e os depoimentos colhidos pelos antropólogos;
quanto às análises empreendidas, tive a
impressão de que a preocupação com o
rigor acadêmico tolheu a liberdade e a
criatividade dos autores, que em geral
descrevem exaustivamente os respectivos campos de investigação, mas não arriscam muito na interpretação teórica
dos dados.
No entanto a atualidade do objeto e a
força das informações colhidas dão o
que pensar. Vivemos em uma cultura do
corpo. Cada pesquisador escolheu um
aspecto dessa cultura: as academias de
musculação; o culto à praia; as operações
plásticas e enxertos de silicone; o consumo de hormônios e anabolizantes; o cultivo do bronzeado; a moda. O conjunto
nos parece monstruoso. Para milhares
de brasileiros, incentivados pela publicidade e pela indústria cultural, o sentido
da vida reduziu-se à produção de um
corpo. A possibilidade de "inventar" um
corpo ideal, com a ajuda de técnicos e
químicos do ramo, confunde-se com a
construção de um destino, de um nome,
de uma obra. "Hoje eu sei que posso traçar meu próprio destino", declara um jovem frequentador de academias de musculação, associando o aumento de seu volume
muscular à conquista de
respeito por si mesmo.
As ciências biomédicas,
em defesa de uma (pretensa) saúde, ocuparam o
lugar deixado vazio pelos
discursos religiosos, filosóficos e morais no mundo contemporâneo. Seu saber orienta uma variadíssima
indústria do corpo, ainda em expansão
no Brasil, cujos imperativos em nome da
vida, da felicidade e da saúde conquistam mercados e mentes. O cuidado de si
volta-se para a produção da aparência,
segundo a crença já muito difundida de
que a qualidade do invólucro muscular,
a textura da pele e a cor dos cabelos revelam o grau de sucesso de seus "proprietários". Numa praia carioca, escreve Stéphane Malysse, as pessoas parecem "cobertas por um sobrecorpo, como uma
vestimenta muscular usada sob a pele fina e esticada...".
São corpos em permanente produtividade, que trabalham a forma física ao
mesmo tempo em que exibem o resultado entre os passantes. São corpos-mensagem, que falam pelos sujeitos. O rapaz
"sarado", a loira siliconada, a perua musculosa ostentam seus corpos como se
fossem aqueles cartazes que os homens-sanduíche carregam nas ruas do centro
da cidade: "Compra-se ouro". "Vendem-se cartões telefônicos." "Belo espécime humano em exposição."
É fato que as sociedades burguesas,
desde o século 19, consideraram o corpo
como propriedade privada e responsabilidade de cada um. O corpo -mas o corpo vestido, domado pela compostura burguesa e embalado
pelo código das roupas-
era o primeiro signo que o
"self-made man" em ascensão, sem antecedentes
nobres, emitia diante do
outro a respeito de quem
ele "é". A aparência substituiu, com vantagens democráticas, o "sangue". O
corpo bem-comportado
de até poucas décadas
atrás dizia: sou uma pessoa decente, confiável,
honrada -e meus negócios vão bem.
O corpo malhado, sarado e siliconado do novo
milênio diz: sou um corpo
malhado, sarado, siliconado. O circuito se fecha
sobre si mesmo. Parece a
ética dos "cuidados de si"
pesquisada por Michel Foucault, mas
não é. O sentido da prática dos cuidados
de si a que se dedicavam alguns cidadãos
romanos, na Antiguidade, estava diretamente articulado ao papel desses homens na vida pública. Ser capaz de cuidar bem do corpo e da mente era condição para cuidar bem dos assuntos da
"polis". No Brasil de hoje, em que o espaço público foi a um só tempo desmantelado e ocupado pela televisão, a produção dos corpos é a produção da visibilidade vazia, da imagem que tenta apagar
a um só tempo o sujeito do desejo e o sujeito da ação política.
A cultura do corpo não é a cultura da
saúde, como quer parecer. É a produção
de um sistema fechado, tóxico, claustrofóbico. Nesse caldo de cultura insalubre,
desenvolvem-se os sintomas sociais da drogadição (incluindo o abuso de hormônios e anabolizantes), da violência e da depressão. Sinais claros de que a vida,
fechada diante do espelho, fica perigosamente vazia de sentido.
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras), entre outros.
Nu e Vestido
414 págs., R$ 35,00
Mirian Goldenberg (org.). Ed.
Record (r. Argentina, 171, CEP
20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/
2585-2000).
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