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Ponto de fuga
Alma russa
Jorge Coli
especial para a Folha
No parque Ibirapuera, em São Paulo, a exposição
"500 Anos de Arte Russa" apresenta uma amostra do
acervo que pertence ao Museu Russo de São Petersburgo. Ela agrupa alguns núcleos. Nenhum se pretende
exaustivo. Uns são mais densos, como o dos ícones e da
vanguarda. Outros são mais rarefeitos, como o da arte
produzida nos últimos 20 anos. O romantismo e o realismo foram ignorados: ficaram de fora, assim, alguns
artistas importantes para a formação da moderna arte
russa.
As obras estão dispostas de modo discreto, sem nenhuma extravagância museográfica, e se deixam ver
tranquilamente. Há apenas um senão maior. Enormes
painéis do tempo de Stálin foram pensados, em sua
concepção de origem, para serem expostos na vertical e,
mais ainda, ao que parece, para se estenderem numa
superfície recurvada. No pavilhão do parque Ibirapuera
encontram-se sobre suportes quase rentes ao chão, de
superfície plana. Isto lhes retira o efeito de "trompe-l'oeil" que pressupõem e, pior, provoca deformações
nas imagens.
Porém o que de fato importa é o poder de revelação
contido nessa mostra. Ela traz uma arte não muito conhecida entre nós, salvo por alguns nomes maiores que
a ilustraram. Ora, o conjunto é esplêndido, feito de
obras muito fortes. Mesmo aquelas submetidas ao realismo socialista e a serviço da mais ignóbil propaganda
política demonstram uma elevada qualidade pictural.
Em tudo, desde os velhos ícones, perpassa uma energia
construtiva, apoiada na complexidade geométrica e no
gosto pelo colorido generoso.
Boleado - Boris Kustodiev (1878-1927) foi um pintor
que soube conjugar multiplicação de minúcias, sentido
monumental e delicadeza de atmosfera. Dois de seus
quadros encontram-se na mostra russa do Ibirapuera.
Um deles é o formidável retrato de Chaliapin, lendário cantor de ópera. Outro mostra a mulher de um mercador tomando chá. Sua beleza é opulenta. Tem pele alva e luminosa, olhos azuis que se perdem em contemplação. Tudo, na tela, se arredonda: o rosto, o decote;
sobre a mesa a melancia, maçãs, uvas; de cada lado a silhueta sinuosa do samovar e do gato luzidio. Data de
1918. No mesmo ano, Rotchenko (1891-1956) pintava
seu "Círculo Branco", em que duas formas circulares
simples, com apoio do escuro e do claro, do vermelho e
do azul, travam um jogo de superposição, de poético
eclipse. Tão diversos em sua aparência imediata, o "Círculo Branco" e "A Mulher do Mercador" convergem na fluência sedutora e misteriosa das curvas.
Opulência - O mundo dos ícones, em que as imagens se
renovam sobre os cânones da arte religiosa; as tensões
vivas nas telas de Malevich (ou Maliévich, na ortografia
um pouco afetada do catálogo); o estrépito criador dos
construtivistas propõem, na mostra do Ibirapuera, uma
beleza esperada. Outros artistas, dentre os mais bem representados, surpreendem na continuidade de suas
obras. Petrov-Vodkin (1878-1939) é um deles. Pintou
meninos angulosos, talhados por um contorno implacável; retratou Anna Akhmatova de modo contido e comovedor; figurou operários em discussão veemente.
Há também um grande número de telas de Filonov
(1883-1941), admiráveis de invenção, de experiências,
ricas de colorido, que se terminam dolorosamente por
um inquietante retrato de Stálin. As obras do realismo
socialista recobrem algo de angustioso na sua incessante proclamação de uma felicidade coletiva. Dentre os artistas oficiais, Samokhavalov multiplicou sólidas trabalhadoras irradiando erotismo: sua "Operária do Metrô
com Broca", de 1937, parece uma precursora comunista
da "Rosie the Riveter", que Norman Rockwell criaria
em 1943. Mas, na mostra, é preciso estar atento à sequência de cada autor, já que as obras individuais foram distribuídas e dispersas em categorias genéricas.
Pompa - O catálogo "500 Anos de Arte Russa" custa R$
280 e pesa 4,5 kg. Com sua abundância de margens e generosa espessura de papel, é um "coffee-table book",
kitsch e incômodo. As notas dos especialistas russos são
discretas. Foram traduzidas para um inglês correto e
para um português bastante maluco. Em ambas, não
raro, o sentido diverge.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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