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De índole polêmica e linguagem forte, Edward Said, morto em setembro, foi um dos grandes críticos da condição colonial
O humanista de vida dupla
Peter Burke
Edward Said [1935-2003], que morreu em 25 de setembro após uma
longa enfermidade, levou uma vida dupla. Foi crítico literário e foi
também uma das vozes mais eloquentes
e apaixonadas em defesa da independência da Palestina. Nos dois casos, poderia
ser definido como um "humanista", para usar um de seus termos prediletos.
Foi um humanista em política, pois estava pronto a condenar a violência cometida pelo seu próprio lado bem como
pelos seus oponentes. Foi um humanista
na universidade, no sentido de ter grande apreço por filologia, como seus heróis
Giambattista Vico e Erich Auerbach,
bem como por definir sua matéria de estudo, a literatura comparada (sobretudo
as literaturas inglesa, francesa e árabe),
num sentido muito amplo do termo "literário". Said estava apto a escrever sobre arte e especialmente sobre música,
uma paixão de toda sua vida, bem como
sobre textos (inclusive relatos de viagem
e textos de história, além de romances).
A exemplo de outro de seus heróis, Antonio Gramsci, empenhou-se em situar
as obras de arte num contexto cultural,
social e político. A maior parte de sua
obra foi polêmica ao extremo. Em literatura assim como em política, Said sempre suscitava emoções fortes, na mesma
medida em que as expressava.
A seguir, vou me concentrar nas realizações de Edward Said como crítico cultural e, pode-se também acrescentar, historiador cultural. Sua reputação repousa
sobre dois livros, "Orientalismo" (1978)
e "Cultura e Imperialismo" (1993) [ambos lançados no Brasil pela Cia. das Letras], além de vários ensaios mais breves.
Antes de 1978, era conhecido nas universidades norte-americanas como um
crítico literário vigoroso, que havia estudado, em particular, a obra de Joseph
Conrad. Após essa data, tornou-se conhecido em muitos países e em diversas
áreas intelectuais, entre elas a história, a
sociologia e a antropologia, além do seu
alvo principal, os "estudos orientais".
"Orientalismo" é um livro fascinante,
exasperante, penetrante e equivocado,
que parece se mover em várias direções
ao mesmo tempo. É, do modo mais óbvio, uma defesa apaixonada da cultura
do Oriente Médio contra os observadores estrangeiros, sobretudo britânicos,
franceses, alemães e norte-americanos,
que a trataram com superioridade e a
consideraram através de uma névoa de
estereótipos de luxo, languidez, passividade, crueldade e assim por diante. Sob
esse aspecto, o livro ocupa seu lugar como um exemplo particularmente bem
escrito de uma série de estudos redigidos
com o intuito de convencer os ocidentais
a levar mais a sério outras culturas.
Exposição vaga
No entanto "Orientalismo" é intelectualmente mais ambicioso do que isso. É também uma tentativa de escrever a história de um tipo de
instituição ou, pelo menos, de uma "formação discursiva" (na linguagem de Michel Foucault, outro dos heróis de Said,
pelo menos naquela época). Essa instituição, sugere Said, foi criada pelos poderes coloniais a fim de dominar a região, a partir da ocupação do Egito por
Napoleão. Essa é a parte mais original no
livro, mas também a mais falha. A formação literária de Said não lhe deu o
aparato necessário para escrever a história de uma instituição, e sua exposição
do assunto é demasiado vaga.
Passa do extremamente geral para o
extremamente particular e tende a deixar de lado a faixa intermediária. Em certo momento, reflete sobre os elos entre o
conhecimento e o poder e, no momento
seguinte, comenta passagens específicas
de textos, observando, por exemplo, a
"má-fé" demonstrada por um orientalista americano, Bernard Lewis. Said parece compelido a direções diferentes.
É atraído pelo modelo de Foucault, de
um discurso sem autor, mas ao mesmo
tempo permanece muito mais interessado do que Foucault em escritores individuais. É atraído pela idéia de que o
"Oriente" é pura invenção ou representação, mas também deseja dizer que o
Oriente Médio foi representado de modo
enganoso pelo Ocidente. Em resumo,
um livro atulhado de críticas dirigidas
aos outros é também, ele mesmo, extremamente vulnerável a críticas.
O que foi e permanece impressionante
em "Orientalismo" é o uso que faz Said
de técnicas próprias de um crítico literário para investigar textos redigidos por
estudiosos como Hamilton Gibb ou
Louis Massignon e por políticos como
Lorde Cromer ou Henry Kissinger bem
como por escritores como Gérard de
Nerval e Gustave Flaubert. A medida do
êxito de Edward Said pode ser avaliada
no fato de que, se em 1970 era quase impensável associar dessa maneira literatura e saber a política, hoje é igualmente
impensável debater intelectuais e escritores sem situá-los num contexto político. O livro foi também oportuno, pegando o embalo das ondas do pós-colonialismo e do pós-estruturalismo e solapando a oposição binária simples entre
Oriente e Ocidente. Produziu um grande
impacto quando foi publicado e continua a despertar interesse (foi traduzido
para o chinês, recentemente). Os desejos
opostos de confirmar e refutar suas conclusões forneceram combustível para
muitas pesquisas.
"Orientalismo" tinha uma larga abrangência, mas "Cultura e Imperialismo" é
ainda mais ambicioso, ao menos geograficamente, pois inclui a África e as Américas. Concentra-se em romances, mas
inclui um capítulo deslumbrante sobre a
ópera "Aída", de Verdi, composta para o
novo teatro de ópera do Cairo, por um
pedido especial do quediva Ismail.
O livro está repleto de surpresas. Encontrar um capítulo sobre Jane Austen
num livro dedicado ao imperialismo foi
um tremendo choque, e devo confessar
que a argumentação de Said, conquanto
engenhosa, ainda não me convenceu de
que a chave do romance "Mansfield
Park", de Jane Austen, é a plantação caribenha que o senhor da família possuía. O
dinheiro proveniente do açúcar podia
ser decisivo para as finanças de alguns
cavalheiros ingleses, mas Antígua permanece marginal ao romance.
Em contraste, um capítulo sobre o romance "Kim", de Rudyard Kipling, a história de um órfão britânico na Índia imperial, era apenas previsível. A surpresa
dessa vez está em descobrir que Said estimava e admirava esse escritor declaradamente imperialista. Said tinha uma notável habilidade para provocar polêmica.
Debate agressivo
Até a sua autobiografia, "Out of Place" [Fora do Lugar,
1999, Vintage Books], suscitou uma intervenção da própria irmã, que o acusou
de apresentar uma imagem deturpada
do pai. "Cultura e Imperialismo" deu ensejo a um debate, cada vez mais agressivo, com um resenhador, o filósofo e antropólogo Ernest Gellner, no qual Said
afirmou que Gellner, que escrevera sobre
o Marrocos, não entendia a língua árabe,
ao passo que Gellner retrucou que Said
não conseguia reconhecer uma ironia.
A força de Said era seguramente a de
um ensaísta. No caso de "Orientalismo"
e de "Cultura e Imperialismo", certos capítulos se destacam do conjunto. Alguns
dos 46 ensaios escritos ao longo de mais
de três décadas e coligidos em "Reflexões
sobre o Exílio e Outros Ensaios" [Cia. das
Letras] mostram o autor no melhor do
seu talento. O espectro é vasto: Vico, ficção árabe, Chopin, Nietzsche, a dançarina do ventre egípcia Tahia Carioca -como foi ela ganhar tal nome?-, Eric
Hobsbawm, Michel Foucault, Samuel
Huntington.
Existe autobiografia bastante para
atrair o leitor para os ensaios, mas não
tanto que dê margem à autocomplacência. Um dos ensaios mais argutos, "Pelos
Olhos de Gringo", discute a imagem da
América do Sul no romance "Nostromo", de Conrad. Era um dos escritores
sobre os quais Said mais tinha a dizer e
também um dos escritores que mais tinha a dizer a ele, em vista da experiência
comum a ambos, de uma vida no exílio e
"entre mundos". A análise sutil do homem que foi "ao mesmo tempo imperialista e antiimperialista" é uma clara advertência de que Said, a despeito de sua
linguagem forte e de sua apaixonada índole polêmica, foi um crítico bastante
ciente dos paradoxos e das ambiguidades da condição humana. Também nesse sentido foi um humanista.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma
História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar).
Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Rubens Figueiredo.
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