|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ autores
Retórica do excesso de Augusto Roa Bastos enobreceu o gênero de romances
sobre ditadores latino-americanos
Catedral e casinhas de fim de semana
Juan José Saer
No dia 6 de novembro, o governo argentino outorgou a Augusto Roa Bastos a Ordem de
Maio, a mais alta condecoração
que o país concede a um cidadão estrangeiro. Tendo fugido do Paraguai e da ditadura de [Alfredo] Stroessner [1954-89],
em circunstâncias romanescas, Roa Bastos viveu e trabalhou muitos anos em
Buenos Aires, onde escreveu a parte
mais importante de sua obra literária, especialmente "Hijo de Hombre" (1960) e
"Eu, o Supremo" [ed. Paz e Terra], que,
depois de mais de uma década de trabalho, viria a publicar em 1974, com merecida repercussão internacional.
A exemplo do que aconteceu com muitos outros intelectuais e escritores latino-americanos -Rubén Darío, Pedro Henríquez Ureña, Alfonso Reyes, Juan Carlos Onetti, Pablo Neruda etc.-, a Argentina e sobretudo a cidade de Buenos Aires permitiram a Roa Bastos elaborar
boa parte de sua obra literária. No seu caso, em particular, até poderíamos dizer
que o melhor dela, apesar das mil vicissitudes públicas e privadas desses anos
turbulentos.
Para os escritores da minha geração,
especialmente os narradores, Roa Bastos
foi o principal interlocutor nos anos 60.
Apesar da diferença de idade, nós nos reconhecíamos em suas idéias literárias e
em sua postura ética e política. Roa Bastos entrou em contato conosco e ajudou
a promover nossos primeiros livros. Prefaciou Daniel Moyano quando ninguém
o conhecia, e sempre podíamos contar
com ele em nossas intervenções públicas, nossas revistas (como "El Escarabajo
de Oro", depois chamada "El Grillo de
Papel", dirigida por Abelardo Castillo e
Liliana Heker, ou a mais volumosa, embora fugaz, "Literatura y Sociedad", dirigida por Ricardo Piglia), em nossos debates, lançamentos de livros e aventuras
editoriais. No meu caso pessoal, Roa
Bastos tentou sem êxito conseguir a publicação de alguns dos meus primeiros
livros, e acho que, para ilustrar sua insólita generosidade, vale a pena contar como nos conhecemos.
Eu tinha publicado meu primeiro livro
por uma editora de Santa Fé, em 1960, e
poucos meses depois recebi o telefonema de uma pessoa que estava de passagem pela cidade e tinha um recado para
mim, do escritor paraguaio Augusto Roa
Bastos. Roa Bastos me mandava um
exemplar autografado de "Hijo de Hombre", que acabara de ganhar o Prêmio
Losada, então o mais importante para a
literatura latino-americana, e me pedia,
na dedicatória, que lhe mandasse um
exemplar do meu livro de contos. Nossa
ininterrupta amizade data dessa época.
Rito de passagem
Em sua obra literária, copiosamente reeditada, traduzida, premiada, comentada, se destacam
os contos de "El Trueno entre las Hojas",
o "romance em forma de contos" (a expressão é de Antonio di Benedetto) "Hijo
de Hombre" e a suma narrativa que
constitui "Eu, o Supremo", singular incursão no gênero chamado de "ditador
latino-americano", que, embora possa
ter seu mais antigo precursor no "Facundo" de Sarmiento, foi oficialmente inaugurado por Valle-Inclán e resgatado por
Miguel Ángel Asturias. Com o passar dos
anos, o gênero se transformaria no rito
de passagem, para não dizer na rima
obrigatória, que parece conferir patente
de latino-americanos a muitos narradores do continente.
Fazendo em pedaços a rígida estrutura
do clichê, incapaz de se contentar com a
mera supressão dos sinais de pontuação
para parecer moderno, Roa Bastos teve a
inteligência de introduzir no livro a problemática literária rigorosamente contemporânea do momento em que o escrevia. O que em outros livros é tema local em "Eu, o Supremo" se transforma
em universalidade detectada num determinado lugar e num momento único, o
Paraguai do século 19 e a ditadura de
Gaspar Francia, que irradiam sentido em
infinitas direções -históricas, geográficas, literárias, espaço-temporais.
Como todos os grandes romances do
século 20, o livro de Roa Bastos não se esgota na exposição de seu tema, que é literalmente um "pré-texto", ou seja, um
núcleo anterior ao texto que o trabalho
de escritura desmonta, modula, dispersa
no texto até encontrar sua forma única,
válida apenas para essa narrativa e para
nenhuma outra, acima do gênero, da tradição, dos dogmas ideológicos ou comerciais que pretendem erigir as convenções e as conveniências da época em
regra intocável.
Maquinaria inclusivista
Poderíamos dizer que o principal traço de "Eu, o
Supremo" é o excesso, atributo que só em
aparência e em nome dessas regras que
pretendem se identificar com o clássico
pode ser considerado negativo. A demasia temática e um tanto folclórica do gênero "ditador latino-americano", até dos
romances que tratam de ditadores "modernos", e que às vezes lhe dá um gosto
desagradável de literatura de exportação,
se transforma na obra de Roa Bastos em
excesso formal, maquinaria inclusivista
que, como a monstruosa Escila, devora
tudo o que encontra no caminho.
Esse inclusivismo também lhe permite
incorporar muitas contradições, que alguns consideram inconciliáveis: é um romance ao mesmo tempo trágico e cômico, realista, mas também fantástico. Como nele se misturam sem complexos o
passado histórico e o presente da escritura, fazendo do anacronismo um instrumento formal, poderíamos dizer sem
medo de errar que, assim como o sonho
para Freud, tal como o descreve em
""Gradiva" de Jensen", o romance do Supremo se constrói com um pé fincado no
passado e o outro no chão igualmente
fértil da véspera.
Os detratores de "Eu, o Supremo" costumam desqualificar o livro alegando
sua essência contraditória e proliferativa,
mas é evidente que esses pretensos erros
de construção constituem seus elementos mais radicalmente renovadores. A
prudência é a menos relevante das preocupações de muitos dos grandes narradores modernos. Melville, Dostoiévski,
Flaubert, mas também Proust, Joyce,
Faulkner, Gadda, Broch (a cujos contos
já foi comparado o romance de Roa Bastos) foram criticados e até desdenhosamente ignorados por causa da ambição
de seus projetos, que iam de encontro
aos preconceitos da crítica.
Quando, em agosto de 1954, apareceu
"Uma Fábula", o romance a que Faulkner dedicara anos de trabalho, os críticos
de Nova York -que, apesar de sua projeção mundial, nunca prestigiavam o escritor- saltaram como feras para atacá-lo e o destroçar, por considerá-lo desproporcionado e caótico. Somente Malcolm
Cowley, que, em 1942, resgatara toda a
obra de Faulkner do semi-esquecimento, escreveu que "Uma Fábula" podia ser
imperfeita e inacabada, como diziam
seus críticos, mas que ainda assim se elevava como uma imensa catedral acima
dos outros livros do ano, que ao lado dele
pareciam casinhas de fim de semana,
apenas corretamente construídas.
A imagem pode ser aplicada a "Eu, O
Supremo", em comparação com boa
parte da literatura contemporânea em
língua castelhana.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino,
autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.
Texto Anterior: + autores: O humanista de vida dupla Próximo Texto: + livros: Deus e nada mais Índice
|