São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003 |
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+ livros EM "CRÍTICA E PROFECIA", LUIZ FELIPE PONDÉ DEFENDE QUE APENAS A FILOSOFIA DA RELIGIÃO PERMITE COMPREENDER INTEGRALMENTE A OBRA DE DOSTOIÉVSKI DEUS E NADA MAIS
Boris Schnaiderman especial para a Folha
O livro de Luiz Felipe Pondé,
"Crítica e Profecia - A Filosofia
da Religião em Dostoiévski",
desenvolve-se com muito conhecimento e empenho, como uma explicitação e desdobramento deste título.
O autor é professor do curso de pós-graduação em ciências da religião do departamento de teologia da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e em
nenhuma passagem do livro ele se desvia
dessa condição de estudioso da filosofia
e da ciência da religião; ao mesmo tempo, não se percebe nas quase 300 páginas
do volume nenhum laivo de proselitismo religioso. Mais ainda, na defesa de
suas concepções sobre o tema, ele cita extensamente estudos de teólogos judeus,
protestantes e grego-ortodoxos, havendo também referências a um teólogo
muçulmano.
Anti-semitismo Nesse sentido, convém atentar mais uma vez num trecho que serve de epígrafe a este livro: "Ame toda a criação de Deus, ela inteira e cada grão de areia nela. Ame cada folha, cada raio da luz de Deus. Se amar tudo, perceberá o mistério divino nas coisas". Em suma, temos aí a mais alta espiritualidade. Mas vejamos como textos deste teor são comentados por Leonid Tsípkin (com referência ao feroz anti-semitismo de Dostoiévski) no romance "Verão em Baden-Baden" [leia resenha do livro na pág. 12], cuja tradução -de Fátima Bianchi- acaba de sair pela Companhia das Letras: "(...) E me pareceu estranho ao ponto do impensável que um homem tão sensível aos sofrimentos humanos em seus romances, tão cioso defensor dos humilhados e ofendidos, que pregava ardorosamente, e até quase freneticamente, o direito à existência de cada criatura terrestre e que cantava hinos de exaltação a cada folhinha e a cada talo de planta, que esse homem não tivesse encontrado uma única palavra em defesa ou em justificativa de um povo perseguido ao longo de milhares de anos" etc. Acrescente-se a isso que os escritos anti-semitas de Dostoiévski, onde se exaltava ao mesmo tempo o caráter tolerante do homem do povo na Rússia, precederam de bem poucos anos os terríveis pogroms do reinado de Alexandre 3º. Mas esse espírito intolerante se manifestava em relação a outros povos também, sobretudo os poloneses. Veja-se como eles são representados em diversas obras, inclusive em reminiscências. Isso quando a Polônia estava exaurida pela cruel repressão da revolta de 1863. Lembre-se também, no "Diário de um Escritor", a crítica áspera que ele faz à filha do grande pensador político A.I. Herzen, que acabava de se suicidar, e que ele contrapõe ao suicídio de uma jovem pobre; esta se atirara de uma janela, agarrada a um pequeno ícone. Esse último episódio lhe inspiraria também o conto "Uma Doce Criatura" (há outras traduções brasileiras desse título), certamente, ao lado de "Bobók", o ápice de sua realização como contista. Bem, onde fica, nesse caso, a mansidão cristã que o romancista exaltava? Outra divergência que tenho com o livro é a parte dedicada à leitura de Dostoiévski por Bakhtin. Embora Luiz Felipe atribua a esta uma importância fundamental, o pensador russo teria feito, segundo ele, uma leitura marxista, o que não está certo, dada a complexa relação de Bakhtin com o marxismo. Em "Problemas da Poética de Dostoiévski" há uns toques de aproximação marxista, mas, em conjunto, essa obra é essencialmente uma abordagem com base na poética, de acordo com o título e uma declaração explícita do teórico, logo no começo do livro. Ademais, lembre-se a verdadeira catilinária contra o materialismo histórico que há em seu inacabado "Para a Filosofia do Ato", enquanto em outros textos adota posição francamente marxista. Embora Pondé cometa esse equívoco, ele revela intuição muito boa, quando afirma em nota que, na base dos teólogos russos, deve-se pressupor em Bakhtin ligação com "uma tradição teológica ortodoxa "cachée'". Essa ligação está plenamente confirmada hoje em dia, inclusive com textos que tinham sido mutilados e com declarações do próprio teórico em fitas gravadas. O linguista Bakhtin Também soa estranha a definição de Bakhtin como linguista (igualmente Northrop Frye), quando se constata pelos seus textos que ele estava às turras com a linguística de seu tempo e defendia a adoção da "metalinguística", que deveria não se ater ao período gramatical e dedicar-se ao estudo dos enunciados. Há outras afirmações discutíveis do autor, como, por exemplo: tratando da origem da teologia russa, ele afirma que, até o século 19, "a Igreja russa teria vivido de traduções do grego e do latim". Nesta obra tão rica de informações sobre a teologia grego-ortodoxa, a maior lacuna, na minha opinião, é a falta de uma referência sequer a Vladímir Solovióv, o grande pensador religioso que foi amigo muito próximo de Dostoiévski nos últimos anos deste, a ponto de viajarem juntos para a região de Óptino, onde tiveram contato com os "stártzi", os monges venerados pelo povo como santos e que teriam papel importante em "Os Irmãos Karamazov". Solovióv tinha então cerca de 25 anos e, Dostoiévski, perto de 60, o que não os impediu de se influenciarem mutuamente, a ponto de muitos textos dos últimos anos do romancista serem impensáveis sem a proximidade do amigo, que teve, todavia, uma postura bem menos conservadora. Quanto ao livro que estamos comentando, seria injustiça deixar de referir o fato de se tratar de anotações de aula, cuja organização coube a Lílian Wurzha Ioshimoto, então aluna do autor, o que explica certas repetições e, às vezes, algumas formulações contraditórias. Mas, a par dessa circunstância, é preciso assinalar que ele avança, com muita garra, no desenvolvimento de um núcleo de idéias articuladas com precisão. Boris Schnaiderman é crítico e tradutor, autor de, entre outros, "A Poética de Maiakóvski" (ed. Perspectiva) e "Os Escombros e o Mito - A Cultura e o Fim da União Soviética" (Cia. das Letras). Crítica e Profecia 288 págs., R$ 32 de Luiz Felipe Pondé. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/3816-6777). Texto Anterior: + autores: Catedral e casinhas de fim de semana Próximo Texto: Lançamentos Índice |
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