|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ teatro
ALUSÕES CIFRADAS E DUPLOS SENTIDOS DA LINGUAGEM ATRIBUEM FORÇA
IRÔNICA À "ANTÍGONA", DE SÓFOCLES, E CONFEREM A ELA SUA DIMENSÃO AO MESMO TEMPO
DE TRAGÉDIA E SUSPENSE
UM DRAMA CRISTÃO DE MARTÍRIO
Divulgação
|
Cena da peça "Antígona", em montagem do grupo Os Satyros |
Kathrin H. Rosenfield
Lawrence F. Pereira
especial para a Folha
Seria Antígona a heroína piedosa
que admiramos pela coragem de
afrontar o decreto de Creonte? E
ela e seu noivo seriam simples vítimas da sede de poder de um tirano insensível? Eis a leitura mais corrente que
torna essa tragédia de Sófocles [cerca de
496 a.C.-406 a.C.] um drama cristão de
martírio. Mas, nessa polarização, onde
ficaria a trama "trágica", o suspense, o
tempo e a tão elogiada "ironia" de Sófocles? Nas entrelinhas, no tom das alusões
e nos duplos sentidos. Ouvi-los requer,
além de uma interpretação coerente e de
comentários que explicam as referências
históricas, uma tradução capaz de fazer
ouvir as outras vozes assombrosas.
É nos diálogos entre Creonte e Hemon
que se vislumbram as múltiplas facetas
da heroína e o problema de seus respectivos estatutos na genealogia.
Detalhe ínfimo
Nada mais sublime
que a admiração reservada por Hemon a
Antígona. Impressiona pela sua proximidade ao louvor ritual reservado pelos
gregos aos guerreiros vindos das grandes
batalhas. O jovem filho de Creonte parece aceitar submeter-se à noiva assim como à estirpe dela. Eis um detalhe ínfimo,
não raro esquecido, que a custo se faz notar, mas que indica a intenção de Sófocles de conectar o problema sucessório
ao imaginário jurídico-político do século
5º a.C.. Instituição vigente nesse século, o
chamado "epiclerado" garantia à filha de
um rei morto sem descendência o direito
e o dever de parir um descendente para o
seu próprio pai.
Se Creonte fosse um contemporâneo
de Sófocles, seria obrigado a casar Antígona, no regime do epiclerado, com seu
mais próximo parente, Hemon. Nesse tipo de casamento, o noivo deve renunciar
à descendência própria, cumprindo o
dever de engendrar um filho para seu sogro. Eis por que, no rito nupcial, a noiva
"epikler", em vez de renunciar à sua estirpe e adotar a casa do marido, permanece no lar de seus ancestrais. Imaginariamente, ela é esse lar, ela é a matriz ou
raiz da descendência por vir, o que se reflete no nome Antí-gona (anti = "no lugar da", gone = "descendência").
Aliança nefasta
É evidente que
Creonte, preocupado com a poluição religiosa (miasma) da cidade pelo incesto e
o fratricídio, vê e sente o casamento entre
Hemon e Antígona como mais uma
aliança nefasta. Ele buscará distanciar-se
da antiga linhagem, portadora da tara de
uma maldição terrível. Instaurando no
trono sua própria linhagem (não poluída), espera salvar Tebas, mas esbarra na
própria resistência de seu filho, Hemon.
Delineou-se, na tradução atual, o dilema de Creonte ao dissuadir Hemon do
casamento amaldiçoado. O trecho aqui
reproduzido, a partir do verso 683, contém a réplica de
Hemon às tentativas paternas de o dissuadir de sua união com Antígona. Procuramos assinalar a profunda ambiguidade do discurso de Hemon. Sua cautela,
quase um temor respeitoso para com o
pai, nós a exprimimos fazendo sentir que
Hemon parece escolher seus termos antes de introduzir seu verdadeiro ponto
de vista.
Embora Hemon ouça, ele não acolhe as
exortações paternas, pois, além de amar
sua noiva, admira nela o espírito heróico
dos Labdácidas. Seu amor aprofunda-se
e se amplia: ele compartilha da visão genealógica, política e cívica da (linhagem
da) sua noiva.
Creonte o acusa de estar cegado pelo
desejo. Mas a possessão erótica é apenas
um aspecto deste elã juvenil, que faz Hemon desejar restabelecer as relações que
uniam, no passado, as duas linhagens. A
qualidade ampla e indeterminada do
amor de Hemon transcende a figura
convencional da noiva. Seu amor abrange toda a existência, levando-o a reconhecer em Antígona uma figura para
além da imagem que a época clássica se
fez de uma mulher.
Esse mesmo elã o torna cego para os
tormentos de seu pai. Ignora a argumentação de Creonte, opõe-lhe um discurso
repleto de graves sentenças. Justas e belas, estas não levam em conta a poluição
de Tebas, a desordem das relações incestuosas que (des)unem as famílias e desarticulam o Estado. Há distância, portanto, entre os problemas concretos de
Creonte (a despoluição de Tebas) e o belo discurso, repleto de lugares-comuns
da ideologia democrática ateniense.
Leitura e encenação
Como um pedagogo, Hemon instrui seu pai: este deve
escutar as assembléias, ceder aos melhores conselhos. No verso 737, Hemon repreende Creonte com uma sentença de
Péricles que estabelece o princípio democrático (a participação de todos no
exercício do poder). Mas a réplica revela
que Creonte tem mais experiência (inclusive retórica). Calmamente, ele escolhe do catálogo de sentenças de Péricles
uma outra máxima em situações de excepcional perigo -as decisões devem
ser assumidas pelo chefe (verso 738).
A atual tradução está voltada tanto para a leitura como para a encenação. Escolhemos o alexandrino como verso base
para as partes dialogadas. Nesse cabem,
extensiva e claramente, as informações
constantes no verso grego. Cabem os artigos, as nuanças sintáticas, as entonações, tão importantes para a encenação.
No longo discurso de Hemon é possível
detectar hesitação, desejo, coragem, respeito juvenil ao pai, despeito. Sua fala é
pura nuança. As entonações do personagem são acompanhadas de variações
acentuais e rítmicas nos versos.
Receptivo no início, cuidadosamente
prudente ou submisso, o discurso de Hemon, do ponto de vista do verso, é tortuosamente recortado ("Quanto a isso
que falas, se é verdade ou não/ Pra afirmar, não posso nem quero ter poder").
Se o primeiro verso, na tradução, é um
alexandrino acentuado na sexta sílaba
(mas sem divisão exata de hemistíquios),
o segundo, acentuado atipicamente na
quinta, hiatizado em três unidades semânticas independentes, represa a fluidez segura do alexandrino clássico, sugerindo hesitação, prudência.
Corneille e Mallarmé
Mas em seguida Hemon se encoraja, sua fala dispara e a ritmação ganha cadência. Então o
ritmo se aproxima do verso dramático
de Corneille assim como em outros trechos oportunos se aproximara dos ritmos suaves e coloquiais de Verlaine e
Mallarmé. Os acentos da fraqueza preconizam o personagem "psicológico" euripidiano. O tom sentencioso que encobre
a hesitação soa no ritmo do seu discurso
("Vê como no cairel da torrente impetuosa/ A árvore que cede salva a sua ramagem,/ Enquanto a que resiste é logo
desraigada./ E quem põe muita força em
firmar o timão/ Sem folgar a pressão, vê a
nave emborcar, E prossegue a viagem
com a quilha para o ar!").
Ritmos binários ascendentes e ternários ascendentes se repetem. Dão velocidade, patos, ao discurso de Hemon. Procedimento tradutório que, portanto, tira
proveito das virtudes tanto neoclássicas
como modernas do alexandrino (alexandrino "romântico", "espanhol" e outros). O verso branco, carente de rima e
com acentos variáveis, exige certa constância rítmica, mas também rupturas
pontuais para que se chegue à coloquialidade desejada do "falar".
Kathrin H. Rosenfield é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).
Lawrence F. Pereira é professor de literatura grega na Universidade Federal de Santa Maria (RS).
Texto Anterior: O percurso digital da dissonância concreta Próximo Texto: + trecho Índice
|