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Ponto de fuga
Não há mais para onde ir
Quem tinha 20 anos em 1970 sabe. O mundo era então
variado, colorido, pitoresco, embebido de promessas e
descobertas. Culturas distantes guardavam segredos
que, uma vez encontrados, se transformavam em revelações, aludindo a sentidos profundos, perdidos ou esquecidos, pelos homens do Ocidente. Esperava-se que o
outro, o estranho, o estrangeiro, fosse explorado, no
sentido primeiro e positivo da palavra, com um fervor
alegre e libertário. As longas viagens ficavam mais fáceis: eram fugas que embelezavam o presente.
As coisas mudaram, porém. Os exotismos estão cada
vez menos intactos, e os olhares, cada vez mais gastos.
Bernardo Carvalho tomou, várias vezes, o tema da viagem em seus livros. No penúltimo, "Nove Noites" [Cia.
das Letras], introduziu, sublinhando, o confronto de
culturas. Não promovia, ali, um processo à antropologia, mas duvidava das capacidades do olhar. Há um paradoxo nisso, porque o olhar do autor, sua percepção
das coisas são agudos, invejáveis. Tão agudo, porém, esse olhar, que termina por desconfiar de si mesmo. O romance mais novo, "Mongólia", que vem agora publicado pela Companhia das Letras, é um diário de viagem
transformado em ficção, um pouco à maneira de Hawthorne, no século 19, com seu "Fauno de Mármore".
Hawthorne, que era um puritano da Nova Inglaterra, se
confrontava, em Roma, com a civilização mediterrânea,
clássica e ensolarada, católica e voluptuosa. "Mongólia"
se passa no lugar mais longínquo e bizarro possível,
mas nele não existe mais confronto entre culturas nem
busca do outro. Nem o outro é, de fato, outro.
Mochila - Bernardo Carvalho deve ser o turista mais
mal-humorado que existe. Não se entusiasma nem se
deslumbra, desconfia. Sublinha os maus cheiros, a abominação das comidas locais, a decadência dos lugares.
Talvez exista um prazer em não ter prazer, para não se
deixar enganar. A Mongólia de Bernardo Carvalho é
vista por filtros muito fortes: um narrador principal e
dois diários que se superpõem.
Há a busca primordial, concentrada numa imagem
misteriosa. Dá a impressão de conservar motivos e impulsos essenciais. Se parece urgente e intensa, é também
distante e inapreensível, como se vista por uma luneta
ao contrário. Chega ao leitor por intermediários cansados, descorçoados: a narração não retraça a busca, mas
a busca da busca. Como Houellebecq, que desloca seus
personagens pelos lugares "turísticos" deste planeta,
para melhor sublinhar o absurdo contemporâneo.
Bernardo Carvalho, porém, não projeta essa luz cínica
e desabusada sobre as relações humanas, tão forte em
Houellebecq, nem reduz seu mundo à frieza indiferente
de "Plataforma" [ed. Record] ou de "Lanzarote".
"Mongólia" guarda antes uma poesia dolorida, como se
pode encontrar em Kafka ou Borges, autores a quem o
livro se refere e se filia. O final tem um sabor borgiano;
por mais determinados que sejam os desencontros, os
seres acabam se unindo pelo destino que se cumpre. É
um antigo sentimento romântico que pulsa lá no fundo.
Percursos - A narrativa de "Mongólia" toma aos poucos o leitor e o prende. O tom discreto tem a força de
melhor revelar a inanidade das procuras obsessivas e de
esmaecer contornos, confundindo rastros. "Nove Noites" é mais nítido que "Mongólia", nele a gênese da escrita não se delineava a partir de uma viagem, mas de
uma pesquisa sólida. O novo romance sugere menos
um labirinto que um areal movediço.
Prendas - "Mongólia" confirma Bernardo Carvalho como grande escritor. Renova, refinando, a textura poética de sua obra. O livro traz uma pista de que seu autor
tenha um outro dom. Houellebecq editou, junto com
"Lanzarote", um álbum de fotografias que ele mesmo
tirou, duras, implacáveis, espantosas. A capa e a contracapa de "Mongólia" trazem três fotos feitas pelo autor,
cujas belezas não parecem ser casuais. Têm uma respiração ampla, algo de cósmico, integrando o céu e as nuvens, exaltando o que é retratado sem recursos fáceis.
Elas levam a desejar uma exposição, já que são poucas
amostras e, por isso mesmo, dão vontade de ver mais.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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