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DOMÍNIO CRESCENTE DO PROGRESSO TÉCNICO NA SOCIEDADE, IMPEDINDO QUALQUER
AÇÃO TRANSFORMADORA, LEVOU O AUTOR DE "DIALÉTICA NEGATIVA" A QUESTIONAR OS PRINCÍPIOS DA TEORIA CRÍTICA E O CÂNONE MARXISTA
O VENENO PARA O ANTÍDOTO
Marcos Nobre
especial para a Folha
Adorno lembra que há quem tenha esfregado as
mãos com satisfação pelo afundamento do Titanic, há quase cem anos. Regozijavam-se com
o iceberg imprevisto que teria dado o primeiro
golpe fatal contra a civilização do progresso, que transforma os homens em apêndices das máquinas, em engrenagens supérfluas do poder dominante. Contra esse
esfregar de mãos, Adorno retruca que o resultado desse
desastre foi, ao contrário, o desenvolvimento de novas
técnicas de controle da navegação que impediram a
ocorrência de outras catástrofes do mesmo tipo.
O progresso, tal como cristalizado socialmente, corrige suas falhas com mais progresso. Isso porque "progresso" é sinônimo de progresso técnico, de progresso
do conhecimento e das habilidades humanas para dominar processos naturais e sociais.
Mas, se é assim, em que sentido se fala de "falhas" do
progresso? Se progresso é simplesmente progresso técnico, as "falhas" são oportunidades de correção e de
reafirmação do próprio progresso técnico, e não oportunidades de questionamento. Paradoxalmente, as "falhas técnicas" resultam em uma reafirmação da própria
técnica e de seu poder, como um veneno que promete
ser ao mesmo tempo o antídoto de si mesmo.
Técnica a serviço da técnica
Essa situação é para
Adorno o real problema a ser enfrentado. Para ele, progresso não é mais, como prometeu o iluminismo, progresso da humanidade enquanto tal, a realização de
uma sociedade de mulheres e homens livres e iguais. O
progresso, como progresso técnico, não está, como se
propala, a serviço da felicidade, mas a serviço da própria técnica e, como tal, da manutenção da ordem vigente. E, ao elaborar esse diagnóstico, Adorno viu-se
obrigado também a reformular o sentido dos princípios
fundamentais da teoria crítica, tradição intelectual a
que se vincula.
A teoria crítica não se limita a descrever "como as coisas funcionam", mas pretende compreender a sociedade à luz de uma emancipação ao mesmo tempo possível
e bloqueada pela lógica própria da organização social
capitalista, que promete a realização de uma sociedade
de livres e iguais, ao mesmo tempo em que, em seu funcionamento concreto, impede sua realização.
Dito de outra maneira, da perspectiva da teoria crítica, é a orientação para a emancipação da dominação o
que permite compreender a sociedade em seu conjunto. E é essa orientação para a emancipação que exige
também que a teoria seja expressão de um comportamento crítico relativamente ao conhecimento produzido e à própria realidade social que esse conhecimento
pretende apreender. Esses dois princípios fundamentais da teoria crítica, herdados de Marx, mostram que a
possibilidade da sociedade emancipada tem de estar
inscrita na forma atual de organização social sob a forma de uma tendência real de desenvolvimento.
Era isso o que era prometido pela idéia de progresso.
O progresso técnico carregaria dentro DE si um potencial explosivo, a ser aproveitado pela ação transformadora, em que o crescente domínio da natureza passaria
a servir a uma sociedade de livres e iguais, à humanidade em seu sentido próprio.
Ocorre que, para Adorno, como se pode entrever em
seu comentário sobre o naufrágio do Titanic, o progresso perdeu esse seu potencial transformador ao reduzir-se por inteiro a "progresso técnico". Esse sentido único
de progresso tornou-se não apenas dominante, mas expressão de uma racionalidade única, uma racionalidade que Adorno denominava "instrumental".
A racionalidade como um todo se reduziu, para Adorno, a uma função de adaptação à realidade, à produção
do conformismo diante da dominação vigente. Essa sujeição ao mundo tal qual aparece não é mais, portanto,
uma ilusão real que pode ser superada pelo comportamento crítico e pela ação transformadora: é uma sujeição sem alternativa.
Na versão que lhe dá Adorno, a teoria crítica não encontra mais ancoramento concreto na realidade social,
porque não são mais discerníveis as tendências reais da
emancipação. A dominação total e completa da racionalidade instrumental sobre o conjunto da sociedade
capitalista resulta então em um bloqueio estrutural da
própria ação transformadora.
Submissão
Nesse momento, Adorno questiona o
sentido original atribuído por Marx à emancipação. O
domínio sempre crescente do progresso técnico não resultou em libertação, mas tão-somente em submissão e
conformismo. É por isso que, para Adorno, a emancipação não pode mais ser pensada como triunfo da racionalidade simplesmente, como progresso no sentido
único que este adquiriu: pois moldar a realidade à feição
da razão produziu uma realidade estranha ao homem,
incapaz de instaurar a verdadeira humanidade. A
emancipação para Adorno passa então a depender do
surgimento (que não está à vista) de uma racionalidade
sem pretensões de anexação do mundo.
Em suma, pretendendo manter-se fiel aos princípios
norteadores da teoria crítica, Adorno considerou não
ser mais possível manter o sentido que lhes foi dado primeiramente por Marx. O que mostra mais uma vez que
é característica fundamental da teoria crítica ser permanentemente renovada e exercitada, não podendo ser fixada em um conjunto de teses imutáveis. Em vista das
transformações históricas do próprio capitalismo,
Adorno entendeu ser necessário dar um novo sentido à
emancipação e ao comportamento crítico e, com isso,
abriu também caminho para uma renovação da própria teoria crítica.
Ar rarefeito
Com sua reformulação dos princípios
da teoria crítica, entretanto, Adorno privou o campo
crítico do que ele tem de mais vital: uma emancipação
inscrita no tempo presente. Sem esse seu elemento vital,
a teoria crítica respira com dificuldade, em ambiente de
ar rarefeito, em que qualquer mínimo movimento lhe
esgota as energias.
Manter a teoria crítica indefinidamente nessas altas
paragens significa hoje pôr em risco a própria continuidade do projeto crítico. Com sua renovação da teoria
crítica, Adorno nos permitiu uma compreensão inteiramente nova e acurada da natureza dos obstáculos à
emancipação a serem vencidos. Mas, ao mesmo tempo,
deixou-nos sem mãos para removê-los.
Levar a teoria crítica adiante significa hoje dirigir todos os esforços na direção de recuperar para o campo
crítico o seu elemento vital de uma emancipação inscrita no presente. Significa levar conosco Adorno para ir
além dele.
Marcos Nobre é professor de filosofia na Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (Cebrap). Publicou, entre outros livros, "A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno" (Iluminuras/Fapesp).
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