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ESTUDO DE CHRISTIAN BÉTHUNE PUBLICADO NA FRANÇA NESTE ANO DISCUTE
POR QUE O FILÓSOFO ERA AO MESMO TEMPO TÃO PREOCUPADO E RETICENTE EM RELAÇÃO AO GÊNERO MUSICAL
A OBSESSÃO PELO JAZZ
Iray Carone
especial para a Folha
Adorno escreveu com obsessão crítica sobre o
jazz, mas deixou lacunas informativas e históricas sobre as suas várias formas e estilos, os nomes dos compositores, dos grandes intérpretes,
das orquestras que empregavam arranjos jazzísticos e
das pequenas "jazz bands" que constituíam, afinal de
contas, o objeto de sua análise musical.
A relação de Adorno com o jazz tem hoje chamado a
atenção de muitos especialistas no assunto, que buscam
em fontes históricas inéditas alguma explicação para o
seu "não" ao jazz.
Um livro publicado neste ano, de Christian Béthune
("Adorno et le Jazz - Analyse d'um Déni Esthétique",
160 págs., 19 euros, ed. Klincksieck), traz à luz informações novas e explicações a respeito do conflito da estética de Adorno com aquilo que se poderia chamar de "categorias estéticas do jazz". O primado dos textos musicais (partituras) sobre a sua interpretação é a tese da estética adorniana que, de saída, compromete uma avaliação positiva do jazz.
Adorno começou a escrever sobre o jazz na Alemanha, onde conheceu o "jazz craze" da República de
Weimar: uma verdadeira onda de jazz de segunda mão,
uma música de dança, porque os alemães não tinham
condições econômicas para lá trazer os seus criadores
norte-americanos e tampouco importar os seus discos.
Por causa dessa particularidade histórica, o que circulava na Alemanha sob a etiqueta "jazz" era apenas um
sucedâneo redutor, uma música de salão, feita de cadências militares e reminiscências folclóricas. Entre
1920 e 1930, foram publicados os "break manuals", propondo receitas para "jazzificar" ou "swingar" qualquer
peça musical (prática das síncopes, improvisações e
embelezamentos visando efeitos sonoros etc.).
Segundo J. Bradford Robinson, essa caricatura alemã
do jazz, largamente difundida pela rádio de Weimar,
bem como os manuais ingênuos de produção doméstica de um gênero musical sofisticado, foram conhecidos
por Adorno quando ainda estudava composição com
Berg. Segundo sua hipótese, em parte para justificar a
incompatibilidade de Adorno com o jazz, as análises
iniciais, em 1933 e 1936, foram "tributárias desta coleção
de tratados caricaturais".
Além disso, o jazz era um apanágio da classe dominante para demonstrar a sua modernidade e o seu poder: as orquestras se apresentavam num ambiente de
luxo que provocava a aversão de Adorno.
Quando o jazz foi banido como música negra decadente das emissoras de rádio durante o nazismo, Adorno fez questão de distinguir a sua crítica da proibição
totalitária, dizendo que não havia motivo para essa interdição porque o jazz não era revolucionário no plano
estético ou perigoso para a ordem social. Quando Joachim Berendt criticou as observações de Adorno sobre
os negros, em 1953, ele respondeu que se empenhava,
com suas poucas forças, em defender os negros contra a
humilhação que sofriam quando se abusava de sua expressividade artística para convertê-los em "clowns".
Sabe-se, por um relato de Volker Kriegel, que, tão logo
chegou a Nova York, em 1938, assistiu a uma apresentação do saxofonista J. Hodges no Cotton Club, acompanhado do crítico musical Leonard Feather. Saiu antes
do final da apresentação, por causa de um mal-entendido, quando Feather sussurrou no seu ouvido: "Fucking
Hodges is really bad!". Na verdade, era um elogio, na gíria dos músicos de jazz, ao caráter "endiabrado" da execução de Hodges, mas Adorno, ao que tudo indica, entendeu o elogio como crítica, consternado por estar
apreciando o espetáculo....
Nos tempos de hoje, o jazz saiu do circuito meramente comercial das emissoras de rádio e da produção das
gravadoras, passando a ser definitivamente apreciado
como um bem cultural do Ocidente. Embora não atinja
mais as massas nem mesmo no seu país de origem e tenha se transformado quase numa peça de museu nos
meios de comunicação que contam sua história, ainda
assim possui muitos aficionados elitistas, especialistas e
intérpretes de alto calibre no mundo inteiro.
Será que as críticas de Adorno ao jazz não foram hoje
definitivamente enterradas, pergunta Béthune, quando
este foi libertado da subordinação aos monopólios capitalistas da música e não mais obrigado a produzir
grandes lucros para as gravadoras e à indústria do entretenimento das massas? Sabe-se, a propósito disso,
que as vendas de músicas do jazz são muito inferiores às
da música clássica no mundo inteiro. Nesse sentido,
pensamos nós, a música de jazz parece que alcançou
uma espécie de autonomia como valor de uso artístico
que jamais poderia almejar quando surgiu como música popular dominante na era do rádio.
Além disso, a falta de referência nominal aos músicos
e intérpretes por Adorno não deixa de ser muito intrigante, pois ele mesmo reconheceu que, no jazz, a reprodução (interpretação) se confunde com a produção. Em
outras palavras, a apreciação estética desse gênero deveria ser mais uma análise dos seus "endiabrados" intérpretes do que das (eventuais) partituras musicais.
Como disse Béthune, enquanto uma partitura de música clássica se refere ao trompete, uma peça escrita de
Duke Ellington se refere ao trompetista; os "head arrangements" de Count Basie e as "spontaneous compositions" de Charles Mingus deixam o espaço da partitura
aberto para a criação do instrumentista. Essa diferença
é, musicalmente falando, uma diferença qualitativa
imanente ao próprio ser do jazz. Em outros termos, a
obra jazzística é autográfica, e não alográfica: um solo
de Lester Young, um "break" de Armstrong ou de
Charlie Parker são objetos concretos, únicos, com a assinatura sonora de seus geniais criadores.
Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em SP, à livraria Francesa (tel. 0/xx/11/3231-4555) e, no RJ, na livraria Leonardo da Vinci
(tel. 0/ xx/21/ 2533-2237).
Iray Carone é professora aposentada do Instituto de Psicologia da
USP e pesquisadora da Universidade Paulista. É organizadora e co-autora de "Psicologia Social do Racismo" (ed. Vozes).
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