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+Cinema
A escolha do povão
"Linha de Passe", que estréia na sexta, aborda as escolhas éticas do
dia-a-dia sem afetar falsa neutralidade
JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Daniela Thomas e
Walter Salles voltam às telas com
"Linha de Passe". A
cultura brasileira,
uma vez mais, é revista pelo talento cinematográfico dos dois
[que juntos dirigiram "O Primeiro Dia" e "Terra Estrangeira", entre outros filmes] e o resultado é apaixonante dos pontos de vista artístico e humano.
A matéria-prima do filme é o
cotidiano dos que carregam este país nas costas.
Cleuza -personagem vivido
por Sandra Corveloni, ganhadora do prêmio de intérprete
feminina no Festival de Cannes- e seus filhos nem transitam pelo bas-fond do poder
nem em meio aos delinqüentes
descamisados.
Seu universo é o das empregadas domésticas que vivem
nos fundos de cozinhas; dos
frentistas dos postos de gasolina; dos motobóis; dos jovens
desempregados que aspiram à
celebridade midiática; das ruas
escuras; das calçadas esburacadas; dos ganidos melancólicos
de cachorros vadios e, finalmente, da luz parca e intermitente do mundo televisivo, último sonho dos que vivem no pesadelo brasileiro.
Os diretores exibem tudo isso sem ares de falsa neutralidade. Em "Linha de Passe", nada
de fábulas edificantes ou do
moralismo de estufa que costuma maquiar a miséria com cores de exotismo.
Desde o início, nos sentimos
concernidos pelo lado oculto
da vida do "povão".
Realidade hostil
Os mitos da ascensão econômica pelo futebol, do ideal do
trabalho enobrecedor, da credulidade religiosa como ópio
para a aspereza do dia-a-dia
etc. são desmontados em suas
engrenagens mentirosas.
Nessa realidade hostil, não
há lugar para contos de fadas.
Quem está sujeito ao tacão do
mais forte cedo aprende a conhecer o chão onde pisa.
Cada um, portanto, se vira
como pode para enfrentar a
brutalidade do dia-a-dia: preconceitos raciais e de classe social, pequenas corrupções e interesses mesquinhos nos locais
de trabalho, consciência de que
a lei é um faz-de-conta para os
privilegiados e, por fim e o mais
grave, apelos constantes para
que todos se degradem moralmente, a fim de que os cínicos
de plantão possam gozar com
sua máxima de vida: "Somos todos porcos, comendo no mesmo cocho".
Até aí, pode-se dizer, estamos em terreno conhecido. Daniela Thomas e Walter Salles,
porém, vão adiante. Trazem à
tona a vida interior dos personagens, duplicando a narrativa
sobre o panorama social com
uma reflexão sobre a delicadeza da condição humana.
Cleuza e sua família são pessoas que, como qualquer um de
nós, devem agir de forma moral. Mas em circunstâncias extremas, o que muda tudo.
O filme mostra o que significa equilibrar-se nessa corda
bamba, em que hesitar em agir
ou agir sem hesitar são condutas igualmente arriscadas.
Decidir entre o bem e o mal,
em regime de urgência e sobre
assuntos que implicam a sobrevivência, é uma das formas
mais duras que temos de por à
prova nossa consciência moral.
Vivendo no limite
Dario e seus irmãos vivem
sempre em estado de exceção,
às voltas com dilemas em que é
quase impossível saber se é
mais justo obedecer à lei ou
transgredi-la, se é mais compassivo guardar fidelidade a valores consagrados ou infringi-los em nome de um bem maior
-o direito à vida e à dignidade.
Donde o inquietante tom
agônico do filme. Os personagens vivem num exaustivo processo de luta consigo e com os
outros, num movimento de
tensão psicológico-moral no limite do insuportável. A qualquer instante, antevemos o desastre que está para acontecer.
Ainda assim, o espaço para a
dúvida é um luxo ao qual nenhum dos personagens pode se
dar. É preciso agir pronto para
perder, é preciso defender desesperadamente o que resta,
sem tempo para chorar as ilusões perdidas.
De vez em quando, todavia, a
raiva e a tristeza contidas explodem e invadem a cena. Esse
é um dos momentos mágicos
do filme. Daniela Thomas e
Walter Salles, numa imprevista
virada ético-estética, mostram
que, mesmo jogados ao fundo
do poço moral, os personagens
não sucumbem.
Ao contrário, reagem e desmentem as clássicas imagens
da impotência dos mais frágeis.
São eles, os desvalidos, que
acabam por afirmar que "o pior
cego é o que não quer ver" e "o
pior paralítico é o que não quer
andar".
Subvertendo de forma criativa a metáfora religiosa dos "milagres evangélicos", os autores
nos fazem ver que o mais extraordinário milagre é o da vontade humana para recomeçar,
ali onde qualquer esperança
parecia morrer.
Finda a projeção, continuamos com os imperativos martelando na cabeça: "Anda!", "vê!".
Belo lembrete dos que sabem
fazer cinema sabendo para que
serve o cinema. Enfim, um filme com a marca registrada de
Daniela Thomas e Walter Salles: inimitável e imperdível.
JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "História da
Psiquiatria no Brasil" (Garamond), entre outros.
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