São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2008

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+Sociedade

Vivendo em Gotham City

"Fobópole" e "Não Matarás" discutem a violência urbana e soluções para combatê-la

ALBA ZALUAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não poderiam ser mais diferentes as perspectivas dos dois livros recém-publicados sobre a violência.
Um foca apenas o Rio de Janeiro, o outro revê a literatura sobre homicídio de quatro continentes para discorrer sobre a necessidade de teorias próprias na América Latina, embora ao final sugira apenas que tais teorias são imperativas. Um discute teorias no teste de hipóteses, o outro, nem um número sequer.
O livro de Gláucio Soares, "Não Matarás - Desenvolvimento, Desigualdade e Homicídios" (ed. FGV, 200 págs., R$ 35), exige um leitor versado em termos estatísticos que o autor não explica nem disseca e, muito freqüentemente, representa apenas com uma letra, de preferência grega.
Não é para leigos nesse idioma exato e hermético. No entanto o autor realiza o trabalho muito necessário de discutir as teorias que explicam as diferentes taxas de homicídios pelo mundo afora, sem esquecer séculos anteriores ao nosso. Só que o faz de um modo muitas vezes surpreendente, passando rápido por séculos de história ou por distâncias continentais em uma mesma página.
Esse grande esforço tem um ponto de vista claramente apresentado desde o início: as tentativas de entender o homicídio que se valem apenas de palavras, mas não de números, fracassam.
Por isso, ignora olimpicamente todos os estudos que lidam com a subjetividade -e suas implicações simbólicas e afetivas- para argumentar competentemente apenas com as variâncias, macro e micro, mas principalmente as "macrovariatas estruturais", que podem estar muito ou pouco correlacionadas com a variável "taxa de homicídio" em cada 100 mil habitantes.
Importante, mas há muito conhecida dos estudiosos, é a crítica que faz à qualidade dos dados, infelizmente não levada em consideração desde o início de sua crítica aos estudos históricos. Embora use séries estatísticas que não podem ser chamadas de históricas porque cobrem dois ou quatro anos, suas ponderações sobre os muitos estudos que resenha são particularmente interessantes e sensatas quando trata da pobreza, da desigualdade, do desemprego industrial ou da desindustrialização, da urbanização e da metropolização contemporâneas.

Contexto
No entanto, de seu cuidadoso e instigante escrutínio dos trabalhos empíricos que analisam tais variáveis, deixa claro que as correlações são inconclusivas ou não são universais na medida em que o "contexto" tem que entrar na explicação.
O problema é que não há nenhuma definição desse conceito, aliás desprezado na crítica feita a Norbert Elias na abertura do livro, um autor que cunhou as idéias de formação subjetiva e formação social para se dar conta do processo civilizatório, sujeito a retrocessos, que afastou em alguns países "desenvolvidos" a praga da violência nas relações pessoais e íntimas, assim como nas impessoais e anônimas.
Do mesmo modo, não define heterogeneidade, integração, subdesenvolvimento social, desorganização, capital social -palavras, sim, que podem se transformar em variáveis quando se consegue bons indicadores para medi-las.
Quando isso não é possível, então temos que recorrer a outros dados, tão valiosos quanto os quantitativos, para montar o quebra-cabeça dos homicídios entre seres humanos que pensam e sentem, portanto dotados de subjetividade. Nem tudo que ilumina é número. É claro que formação social e estatal, por exemplo, não se resumem à escolaridade ou ao crescimento da burocracia estatal mensuráveis.
De fundamental importância são os jogos parlamentares, esportivos e da civilidade, além do monopólio legítimo da violência, ou seja, cidadãos desarmados, temas apenas mencionados por Soares, mas que aparecem disfarçados sob outros signos no final do livro, quando discute, enfim, as políticas públicas -em especial o desarmamento e o papel da polícia no aumento ou diminuição da criminalidade em várias cidades do continente americano.
Marcelo Lopes de Souza (em "Fobópole - O Medo Generalizado e a Militarização da Questão Urbana", ed. Bertrand Brasil, 288 págs., R$ 37) adota a estratégia oposta de montar o quadro das explicações para o imenso quebra-cabeça em que se tornou a segurança no Rio de Janeiro, com o foco nos afetos e nas percepções dos moradores da cidade.
Afirma que a preocupação com a segurança acompanha os urbanitas ao longo da história das cidades, mas que nem sempre a violência e a insegurança afetaram a vida cotidiana nelas a ponto de alterar a circulação no espaço urbano e as formas espaciais que este adquire.

Auto-segregação
Refere-se aos encraves territoriais ilegais que restringem o ir-e-vir dos moradores e dos agentes estatais, inclusive policiais, bem como aos condomínios da cidade vigiada.
Para ele, mais que a militarização das atividades ilegais nesses encraves, é o medo que vai explicar a auto-segregação das "elites" e "classes médias" em condomínios. Fobópole, nome do seu livro, é a cidade dominada pelo medo da criminalidade urbana.
Não é conclusão nova, mas a questão é tratada com riqueza de dados sobre a organização do espaço urbano, ao mesmo tempo produto social e condicionante das relações sociais, portanto também da violência.
Suas propostas finais são, por isso, mais coerentes e claras. Não se trata de eliminar a violência em paradisíaca e monótona cidade, mas de diminuir a criminalidade violenta motivada por pobreza e desigualdade com políticas públicas discutidas em nível local, combinando medidas institucionais com as socioespaciais que incidiriam sobre a fragmentação social, revertendo um quadro há longo tempo instalado no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Não é tarefa fácil, mas é imprescindível. O resto seria apenas paliativo. No entanto alerta para que, enquanto perdurarem as facilidades globais e nacionais para o tráfico de drogas, as cidades brasileiras continuarão a enfrentar sérios problemas de segurança. Como combinar tais questões tão complexas em estratégias políticas é o que ainda está por ser concretizado. Os dois livros oferecem sugestões já adotadas e outras que vale a pena perseguir.


ALBA ZALUAR é antropóloga e autora de, entre outros livros, "Integração Perversa - Pobreza e Tráfico de Drogas" (FGV).


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