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+Sociedade
Vivendo em Gotham City
"Fobópole" e "Não Matarás" discutem a violência urbana e soluções para combatê-la
ALBA ZALUAR
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não poderiam ser
mais diferentes as
perspectivas dos
dois livros recém-publicados sobre a
violência.
Um foca apenas o Rio de Janeiro, o outro revê a literatura
sobre homicídio de quatro continentes para discorrer sobre a
necessidade de teorias próprias
na América Latina, embora ao
final sugira apenas que tais teorias são imperativas.
Um discute teorias no teste
de hipóteses, o outro, nem um
número sequer.
O livro de Gláucio Soares,
"Não Matarás - Desenvolvimento, Desigualdade e Homicídios" (ed. FGV, 200 págs., R$
35), exige um leitor versado em
termos estatísticos que o autor
não explica nem disseca e, muito freqüentemente, representa
apenas com uma letra, de preferência grega.
Não é para leigos nesse idioma exato e hermético. No entanto o autor realiza o trabalho
muito necessário de discutir as
teorias que explicam as diferentes taxas de homicídios pelo
mundo afora, sem esquecer séculos anteriores ao nosso. Só
que o faz de um modo muitas
vezes surpreendente, passando
rápido por séculos de história
ou por distâncias continentais
em uma mesma página.
Esse grande esforço tem um
ponto de vista claramente
apresentado desde o início: as
tentativas de entender o homicídio que se valem apenas de
palavras, mas não de números,
fracassam.
Por isso, ignora olimpicamente todos os estudos que lidam com a subjetividade -e
suas implicações simbólicas e
afetivas- para argumentar
competentemente apenas com
as variâncias, macro e micro,
mas principalmente as "macrovariatas estruturais", que
podem estar muito ou pouco
correlacionadas com a variável
"taxa de homicídio" em cada
100 mil habitantes.
Importante, mas há muito
conhecida dos estudiosos, é a
crítica que faz à qualidade dos
dados, infelizmente não levada
em consideração desde o início
de sua crítica aos estudos históricos. Embora use séries estatísticas que não podem ser
chamadas de históricas porque
cobrem dois ou quatro anos,
suas ponderações sobre os
muitos estudos que resenha
são particularmente interessantes e sensatas quando trata
da pobreza, da desigualdade, do
desemprego industrial ou da
desindustrialização, da urbanização e da metropolização contemporâneas.
Contexto
No entanto, de seu cuidadoso
e instigante escrutínio dos trabalhos empíricos que analisam
tais variáveis, deixa claro que as
correlações são inconclusivas
ou não são universais na medida em que o "contexto" tem que
entrar na explicação.
O problema é que não há nenhuma definição desse conceito, aliás desprezado na crítica
feita a Norbert Elias na abertura do livro, um autor que cunhou as idéias de formação
subjetiva e formação social para se dar conta do processo civilizatório, sujeito a retrocessos,
que afastou em alguns países
"desenvolvidos" a praga da violência nas relações pessoais e
íntimas, assim como nas impessoais e anônimas.
Do mesmo modo, não define
heterogeneidade, integração,
subdesenvolvimento social, desorganização, capital social
-palavras, sim, que podem se
transformar em variáveis
quando se consegue bons indicadores para medi-las.
Quando isso não é possível,
então temos que recorrer a outros dados, tão valiosos quanto
os quantitativos, para montar o
quebra-cabeça dos homicídios
entre seres humanos que pensam e sentem, portanto dotados de subjetividade.
Nem tudo que ilumina é número. É claro que formação social e estatal, por exemplo, não
se resumem à escolaridade ou
ao crescimento da burocracia
estatal mensuráveis.
De fundamental importância
são os jogos parlamentares, esportivos e da civilidade, além
do monopólio legítimo da violência, ou seja, cidadãos desarmados, temas apenas mencionados por Soares, mas que aparecem disfarçados sob outros
signos no final do livro, quando
discute, enfim, as políticas públicas -em especial o desarmamento e o papel da polícia no
aumento ou diminuição da criminalidade em várias cidades
do continente americano.
Marcelo Lopes de Souza (em
"Fobópole - O Medo Generalizado e a Militarização da Questão Urbana", ed. Bertrand Brasil, 288 págs., R$ 37) adota a estratégia oposta de montar o
quadro das explicações para o
imenso quebra-cabeça em que
se tornou a segurança no Rio de
Janeiro, com o foco nos afetos e
nas percepções dos moradores
da cidade.
Afirma que a preocupação
com a segurança acompanha os
urbanitas ao longo da história
das cidades, mas que nem sempre a violência e a insegurança
afetaram a vida cotidiana nelas
a ponto de alterar a circulação
no espaço urbano e as formas
espaciais que este adquire.
Auto-segregação
Refere-se aos encraves territoriais ilegais que restringem o
ir-e-vir dos moradores e dos
agentes estatais, inclusive policiais, bem como aos condomínios da cidade vigiada.
Para ele, mais que a militarização das atividades ilegais
nesses encraves, é o medo que
vai explicar a auto-segregação
das "elites" e "classes médias"
em condomínios. Fobópole,
nome do seu livro, é a cidade
dominada pelo medo da criminalidade urbana.
Não é conclusão nova, mas a
questão é tratada com riqueza
de dados sobre a organização
do espaço urbano, ao mesmo
tempo produto social e condicionante das relações sociais,
portanto também da violência.
Suas propostas finais são, por
isso, mais coerentes e claras.
Não se trata de eliminar a
violência em paradisíaca e monótona cidade, mas de diminuir
a criminalidade violenta motivada por pobreza e desigualdade com políticas públicas discutidas em nível local, combinando medidas institucionais
com as socioespaciais que incidiriam sobre a fragmentação
social, revertendo um quadro
há longo tempo instalado no
Rio de Janeiro e em São Paulo.
Não é tarefa fácil, mas é imprescindível. O resto seria apenas paliativo. No entanto alerta
para que, enquanto perdurarem as facilidades globais e nacionais para o tráfico de drogas,
as cidades brasileiras continuarão a enfrentar sérios problemas de segurança.
Como combinar tais questões tão complexas em estratégias políticas é o que ainda está
por ser concretizado. Os dois livros oferecem sugestões já adotadas e outras que vale a pena
perseguir.
ALBA ZALUAR é antropóloga e autora de, entre
outros livros, "Integração Perversa - Pobreza e
Tráfico de Drogas" (FGV).
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