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A segunda pele
SVENDSEN VÊ A MODA COMO UM DOS FENÔMENOS
MAIS INFLUENTES DO OCIDENTE, MAS ATACA A FALTA
DE ORIGINALIDADE E DE CRÍTICOS INDEPENDENTES
A moda, se for vista como arte, é uma arte bastante insignificante; é, com freqüência, uma repetição
de gestos vazios
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Sergio Alberti - 23.jun.08/Folha Imagem
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Platéia aplaude modelos da grife alemã Sisi Wasabi, em Berlim
ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE MODA
Livros sobre a moda
existem às pencas, mas
há poucos que merecem um lugar na estante, como "Fashion - A
Philosophy" (Moda - Uma Filosofia, Reaktion Books, 188
págs., 12,95, R$ 39), de Lars
Svendsen. Há muito tempo a
moda não é objeto de uma reflexão aprofundada, pertinente, atual e provocadora como a
que é feita neste livro.
Professor na Universidade
de Bergen (Noruega), Svendsen é um dos jovens pensadores europeus que merecem ser
seguidos com atenção. Tem 37
anos e já publicou quase uma
dezena de obras, cujos temas
tratam da arte, da biologia, do
mal e, agora, do trabalho
-"Work", seu novo livro, será
lançado na Europa e nos EUA
em setembro.
No Brasil, seu único livro publicado é "Filosofia do Tédio"
(Jorge Zahar Editor).
"Moda" foi lançado na Noruega em 2004. As traduções
começaram a aparecer há pouco mais de um ano -em países
europeus e nos EUA.
A abordagem de Svendsen é
ambiciosa. Em oito capítulos,
reflete sobre todos os lados do
prisma da moda, tratando de
suas relações com a linguagem,
o corpo, a arte e o consumo. Arremata com uma reflexão sobre a "moda como ideal de vida", tal como o capitalismo
avançado nos coloca.
Todos os principais filósofos
e sociólogos que refletiram sobre moda passam pelo crivo e
pelo debate de Svendsen -de
Kant a Adorno, de Simmel a
Benjamin, de Adam Smith a
Gabriel Tarde, de Elias a Bourdieu. Por isso, o livro é também
um precioso apanhado da (periférica) reflexão sobre moda
na filosofia e na sociologia.
Svendsen possui ainda um
impressionante conhecimento
da história da moda e pesquisou bastante a produção do seu
discurso contemporâneo. Isso
lhe permite passar com desenvoltura a comentários sobre os
estilistas Martin Margiela ou
Rei Kawakubo (da grife Comme des Garçons).
Ele sabe o risco que corre ao
escrever este livro, do ponto de
vista intelectual. Sabe que fazer
filosofia da moda é ser acusado
de falta de substância ou seriedade. Mas, atento à atualidade,
enfrenta o desafio, imbuído da
certeza de que é preciso refletir
sobre este que é "um dos fenômenos fundamentais do mundo contemporâneo". "A moda
converteu-se em quase uma
"segunda natureza" nossa", diz
em entrevista à Folha.
Svendsen analisa sem piedade as pretensões artísticas da
moda ("Se a moda devesse ser
considerada arte, seria uma arte pouco significativa", aponta), a imprensa especializada e
a criação atual dos estilistas.
Também discute a incapacidade da moda em estabelecer um
diálogo "com a evolução política da sociedade".
Mas seu livro não foi feito para demolir a moda e seus mitos,
e sim para investigar por que o
discurso sobre ela se tornou
tão dominante e "totalitário",
infiltrando-se na cultura em
geral. Ele pretende sondar como a produção de identidade(s), hoje, está sujeita a esses
paradigmas de consumo e
transitoriedade que são próprios da moda.
"Não existe área alguma de
nossa vida social, seja a arte, a
política ou mesmo a filosofia,
que não seja em grande medida
regida pela lógica da moda",
afirma Svendsen a seguir.
FOLHA - O sr. diz em seu livro que
ser um "filósofo de moda" é correr o
risco de ser acusado de falta de substância ou de seriedade. Por que decidiu se debruçar sobre esse assunto?
LARS SVENDSEN - Eu havia escrito um pouco sobre moda em
meu livro sobre o tédio, e ali
observei que se fazia necessário um estudo filosófico mais
cuidadoso da moda.
A razão pela qual a moda tem
importância tão grande hoje é
que ela afeta a atitude da maioria das pessoas em relação a
elas próprias e aos outros. Como observo no livro, desde a
Renascença ela tem sido um
dos fenômenos mais influentes
na civilização ocidental.
Vem conquistando cada vez
mais áreas do homem moderno e se converteu quase em
uma "segunda natureza" nossa.
Assim, a compreensão da
moda deve contribuir para a
compreensão de nós mesmos e
de como pensamos e agimos.
FOLHA - O sr. diz também que nosso pensamento continua marcadamente platônico. Refletir sobre a
moda é estar movido essencialmente por um antiplatonismo?
SVENDSEN - Eu mesmo sempre
desconfiei das metáforas filosóficas tradicionais de "profundidade" e "superfície", em que
profundidade equivale a "verdade" e superfície é, de alguma
maneira, enganoso ou falso.
Não importa qual seja o tópico filosófico que nos propomos
a investigar, acho que sempre
devemos tentar fazer justiça
aos fenômenos em si, da maneira como se manifestam. Isso significa que também devemos levar a "superfície" a sério.
Em relação a isso, concordo
com Oscar Wilde: "São apenas
as pessoas superficiais que não
julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o
visível, não o invisível".
FOLHA - Poderíamos dizer que o
mercado da moda, com a sua rapidez de produção e de consumo, com
a sua busca irrefreável de originalidade e substituição, tornou-se uma
espécie de paradigma de marketing
e negócios para o capitalismo atual?
SVENDSEN - Moda e capitalismo
são perfeitamente adequados
um ao outro. O capitalismo só
pode funcionar enquanto o
consumidor continuar a comprar produtos novos, e o consumidor que está na moda depende de um fluxo constante de
produtos novos.
O princípio da moda é criar
uma velocidade constantemente crescente, para fazer um
objeto tornar-se supérfluo o
mais rapidamente possível, para então passar para outro.
A consciência do poder da
moda é a consciência de que os
produtos não vão durar; e, se
vamos escolher um produto
que inevitavelmente ficará ultrapassado, vamos tender a escolher a última moda, e não
uma moda anterior. Os produtos não duram, nem se pretende que o façam.
Essa é uma parte importante
da atração exercida pelo produto pós-moderno: daqui a
pouco poderá ser substituído!
FOLHA - Para o sr., a criação em
moda responde sobretudo a solicitações internas, sendo a própria moda incapaz de um diálogo com "a
evolução política da sociedade". Por
que a moda é tão impenetrável aos
acontecimentos sociopolíticos?
SVENDSEN - Há várias razões
para que isso aconteça. Uma
questão evidente na moda, e
em muitas outras disciplinas
estéticas, é que a maior parte
da moda é baseada em modas
anteriores, assim como a maior
parte da arte é feita a partir de
artes anteriores.
Se você quiser explicar uma
determinada moda, é mais provável que encontre uma resposta plausível analisando modas passadas, em vez de tentar
enxergar a moda como reflexo
da realidade política ou social.
Além disso, a moda possui
uma capacidade incrível de
apagar o significado simbólico
de tudo o que incorpora.
Foi por isso que Che Guevara
pôde tornar-se um item altamente vendável em um sistema de moda capitalista. Nas camisetas com sua imagem, não
resta praticamente nada da política revolucionária de Che
(nem de suas mãos ensangüentadas, já que ele torturou e executou prisioneiros políticos).
Quando se vende moda, vende-se um valor simbólico; ao
mesmo tempo, a moda tende a
apagar esse valor simbólico
muito rapidamente, de maneira que precisa constantemente
buscar novos valores simbólicos que possa "canibalizar".
E o underground é um dos
maiores fornecedores de tais
valores simbólicos.
FOLHA - O sr. também diz que a
moda é "praticamente incapaz de
comunicar qualquer coisa de significativo". Comparando-a com a arte,
afirma que a moda "parece encastelada num círculo onde, na prática,
não faz mais que se repetir e perder
pouco a pouco o significado". Isso
quer dizer que ela ocupa um lugar
inferior na esfera da cultura?
SVENDSEN - Desde a separação
entre a arte e o trabalho artesanal, no século 18, os alfaiates ficaram do lado do artesanato.
As roupas foram colocadas na
esfera extra-artística e ali permaneceram até hoje.
Desde que a alta costura foi
introduzida, por volta de 1860,
a moda aspira a ser reconhecida como arte plena. Essa tendência vem se fortalecendo nos
últimos 30 anos.
Embora a arte às vezes encontre inspiração na moda, é
mais comum que a moda tente
tornar-se arte. O problema é
que, embora haja instâncias de
moda que estão inteiramente
no nível da arte, a maior parte
do que se passa na moda é artisticamente desinteressante.
De modo geral, a moda, se for
vista como arte, é uma arte bastante insignificante. Com freqüência, não passa muito de
uma repetição de gestos vazios
que já foram consumidos no
campo da arte.
FOLHA - O que o sr. quer dizer
quando afirma que "hoje a moda se
encontra no ponto mais baixo de
sua curva criativa"?
SVENDSEN - Que muito pouca
coisa da moda criada hoje possui interesse estético. Quando
vemos uma coleção nova de um
estilista, a reação típica é dizer
que ela é "bacana", mas que já a
vimos só Deus sabe quantas vezes antes.
Anteriormente, a moda seguia uma norma modernista,
segundo a qual uma moda nova
deveria tomar o lugar de todas
as anteriores e torná-las supérfluas. A lógica tradicional da
moda é a lógica da substituição.
Nos últimos dez a 15 anos,
porém, ela vem sendo definida
por uma lógica da suplementação, em que todas as tendências são recicláveis e em que
uma nova moda não tem por
meta tomar o lugar de todas as
que a antecederam, mas se
contenta em suplementá-las.
A própria qualidade de ser
"novo", que era essencial à moda no passado, deu lugar a uma
eterna recorrência do mesmo.
FOLHA - Em contraposição a Boris
Groys, que descreve a moda como
antiutópica e antitotalitária, o sr.
afirma que "a moda é o fenômeno
mais totalitário do mundo, porque
assujeitou praticamente todos os
campos à sua lógica e assim se tornou onipresente". Que tipo de totalitarismo é esse?
SVENDSEN - Ela é totalitária na
medida em que praticamente
não existe área nenhuma de
nossa vida social, seja a arte, a
política ou mesmo a filosofia,
que não esteja em grande parte
regida pela lógica da moda.
É um mecanismo social que
tem uma capacidade espantosa
de transformar todo fenômeno
social com que tem contato.
FOLHA - Por que as modelos se
transformaram em grandes estrelas
midiáticas de nossa época? Que função elas exercem na "ideologia da
realização estética" do sujeito, como o sr. escreve?
SVENDSEN - As modelos são a
mais alta encarnação de uma
cultura em que nossas identidades essenciais devem estar
situadas em nossos corpos, não
em nossas almas. A formação
da auto-identidade na era pós-moderna é, num sentido crucial, um projeto do corpo.
O corpo tornou-se um objeto
de moda especialmente privilegiado. Aparece como algo
plástico, que se modifica constantemente para adequar-se às
novas normas que surgem. E as
modelos são as representantes
maiores dessas normas.
Mas mesmo elas não chegam
a adequar-se às normas.
Já na década de 1950 não era
incomum que modelos se submetessem a cirurgias plásticas
para se aproximarem das normas, por exemplo removendo
seus molares posteriores para
conseguir ter faces cavadas ou
tendo costelas removidas para
alcançar o formato de corpo
desejado.
A distância entre os corpos
das modelos e os corpos "normais" continua a aumentar.
Assim, a norma se torna pura
ficção, mas nem por isso perde
sua função normativa.
FOLHA - O sr. escreve que uma razão importante pela qual a moda
não obteve um reconhecimento parecido àquele atribuído às outras artes é que ela não tem uma tradição
de crítica séria. Por que a moda nunca desenvolveu uma crítica séria, na
sua opinião? Como o sr. imagina que
deva ser essa crítica?
SVENDSEN - Acho que ela deveria ser bastante semelhante à
crítica de arte, com críticos independentes que são livres para dizer o que realmente pensam da qualidade dos objetos
que submetem a seu escrutínio. Esses críticos devem, de
preferência, ter uma formação
em história da moda.
A maior parte do que se escreve sobre moda em revistas
hoje em dia é simplesmente
uma extensão da publicidade.
Os redatores de moda têm
medo de criticar os estilistas, já
que isso poderia resultar em
menos anúncios em suas revistas. Uma tradição de crítica séria de moda não poderá ser
criada de um dia para outro
-levará tempo.
Mas isso será necessário para que algum dia a moda possa
ser realmente levada a sério como disciplina estética.
FOLHA - O sr. critica a idéia do sociólogo francês Gilles Lipovetsky
-de que a moda torna o mundo
mais democrático, pois substitui as
disputas de fundo por um gosto da
superfície- e afirma que a democracia tem necessidade dos atritos
sociais e do dissenso. A moda, com
seu gosto pela elitização, não é essencialmente antidemocrática? Redes como a Zara efetivamente democratizam o design de moda?
SVENDSEN - Essas redes de fato
democratizam a moda, pois a
tornaram acessível a uma parte
maior da população. Mas não
vejo isso necessariamente como grande vitória democrática.
O número de peças de roupa
que podemos encontrar no
guarda-roupa do cidadão mediano não chega a ser um bom
indicativo do funcionamento
adequado, ou não, das instituições democráticas de seu país.
FOLHA - Em um comentário duro, o
sr. diz que, se a lógica da moda se
torna norma na construção da identidade, ela pode se tornar um fator
desagregador. E conclui que caminhamos para a completa "dissolução da identidade". Como a moda
participa disso?
SVENDSEN - Todos nós, de alguma maneira, expressamos
quem somos por meio de nossa
aparência visual, e essa expressão vai necessariamente dialogar com a moda. E os ciclos de
moda cada vez mais acelerados
indicam um conceito mais
complexo do eu, porque o eu se
torna mais transitório.
O consumidor pós-moderno
não consegue firmar uma identidade pessoal viável por meio
de seu consumo porque o fato
de esse consumo focalizar o
transitório enfraquece a formação da identidade.
Se nossa identidade é diretamente vinculada às coisas que
nos cercam -ou seja, ao valor
simbólico das coisas-, essa
identidade será tão transitória
quanto são aqueles valores
simbólicos.
FOLHA - O sr. vê alguma relação
entre moda e tédio?
SVENDSEN - Essa relação existe.
A moda cria uma mentalidade
inquieta e agitada, na qual nos
entediamos muito facilmente e
constantemente ansiamos por
algo novo e "interessante".
Como observei em meu livro
sobre o tédio, o olhar estético
precisa ser estimulado por uma
intensidade aumentada ou, de
preferência, por algo novo.
Vale observar, entretanto,
que o olhar estético tem a tendência a recair no tédio -um
tédio que define todo o conteúdo da vida de maneira negativa,
porque é aquilo que precisa ser
evitado a qualquer preço.
O consumo de moda funciona como uma espécie de entretenimento, e é uma maneira
cada vez mais comum de combater o tédio. Passamos a ser
cronicamente estimulados por
um fluxo constante de fenômenos e produtos "novos", mas
também nos entediamos mais
rapidamente, em igual medida.
Tradução de Clara Allain .
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