|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O chique das coisas banais
PARA O
FRANCÊS
DANIEL ROCHE,
INDÚSTRIA
DA APARÊNCIA
ENTRA
EM CHOQUE
COM
DIVERSIDADE
SOCIOCULTURAL
No século 17, seguiam-se sobretudo as referências da moda espanhola,
e não as da francesa
|
DENISE BERNUZZI DE
SANT'ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Professor do Collège
de France e autor de
livros fundamentais
sobre moda e indumentária, Daniel Roche não se limita ao estudo das
roupas e de seu crescente comércio na época moderna.
Suas publicações tratam de
temas que vão da cultura
eqüestre na Europa ao cotidiano popular do século 18, passando pela história da higiene e
da intimidade burguesa.
Mesmo em seu vasto trabalho "A Cultura das Aparências
-Uma História da Indumentária, Séculos 17-18 (ed. Senac)",
há uma história cultural e social da França cujo alcance ultrapassa a suposta superficialidade expressa pela insistente
flutuação das modas.
Para Roche, a história das
coisas banais está relacionada à
economia e à política das nações. A produção e o consumo
das roupas expressam não apenas os sonhos de uma época
mas, sobretudo, seus limites e
impasses.
FOLHA - Quais os principais desafios encontrados em sua pesquisa
sobre a história da indumentária?
DANIEL ROCHE - Uma primeira
constatação se impõe para
quem estuda a indumentária
entre os séculos 16 e 18: os gastos dos franceses com roupas
foram os que mais se destacaram no orçamento geral das famílias! Poucos estudos haviam
questionado essa situação, cujas causas são múltiplas.
Há trabalhos sobre indústria
têxtil, sobre economia do consumo, há ainda o estudo que
aprecio bastante, do pesquisador suíço Philippe Perrot, sobre a cultura vestimentar e suas
relações com o corpo feminino.
Mas o principal desafio foi a
organização da pesquisa. Trabalhei o tema em seminários,
recebi contribuições de estudantes, o que supôs um diálogo
contínuo com os documentos.
FOLHA - A cultura material é um
campo de investigação que tem relevância em suas pesquisas. Mas em
"A Cultura das Aparências" o sr. se
volta mais para as representações
dessa cultura do que propriamente
para o estudo dos objetos. A moda
não seria um dos terrenos privilegiados para refletir sobre a constituição
da cultura material?
ROCHE - Sim, a presença da cultura material é inegável. Aliás
desde a década de 1960 há estudos sobre a importância desse
domínio na antropologia e na
arqueologia.
De fato, não utilizei os objetos -roupas, calçados- como
figuras centrais de análise, pois
me concentrei em suas representações.
Mas investigar a cultura material é uma maneira, por
exemplo, de perceber como é
possível um vestido do século
17 não ser a mesma coisa que
um vestido do século 20, apesar
de ambas as peças se chamarem "vestido".
Assim, pode-se, a partir da
cultura material, encontrar
problemas importantes com os
quais a antropologia e a etnologia vêm há muito trabalhando.
FOLHA - Isso talvez se deva ao fato
de que o sistema de moda varia historicamente.
ROCHE - Claro, e a partir daí é
possível vislumbrar dois pólos
de tensão: primeiro, o pólo da
necessidade. Trata-se de culturas e sociedades sobre as quais
há um grande peso das coisas
imediatas, uma coação constante para usar e reutilizar o
que já é conhecido.
Por exemplo, o consumo de
roupas no século 16 é ditado
por diversas necessidades, entre as quais a de se proteger de
inúmeros ataques. Aqui não se
trata de uma economia baseada
no "parecer".
Assim, o segundo pólo se situa à margem daquela economia das necessidades fundamentais: há mudanças significativas nas maneiras de vestir
que escapam da noção de consumo durável ou útil.
De qualquer modo, a cultura
das aparências é urbana, ela
ocorre num meio em que as
coisas circulam cada vez mais,
são produzidas e consumidas
de modo veloz.
FOLHA - Mas há também o consumo das elites.
ROCHE - Pois bem, o segundo
pólo é justamente o do consumo aristocrático, imposto à elite desde os séculos 14 e 15.
Nele encontra-se o papel da
corte, as leis suntuárias, as normas e códigos vestimentares.
Aqui se destaca o consumo de
quem cobiça a distinção social.
Percebe-se então o valor social
e político das roupas. Nesse caso, a cultura das aparências designa quem tem poder.
Mas há nesse universo um
paradoxo interessante: conforme lembrou [o filósofo Blaise]
Pascal, as pessoas são aquilo
que aparentam ser e, no entanto, "a roupa não faz o monge". É
sempre possível esconder alguns traços da personalidade
ou modificá-los por meio da
vestimenta.
FOLHA - Do século 16 ao 18, tende
a crescer a liberdade nos atos de vestir e escolher as roupas. Mas essa liberdade não viria acompanhada de uma exigência maior em relação aos
cuidados com o corpo?
ROCHE - Sim, pois as roupas no
século 17 ainda eram muito
pouco adaptadas à flexibilidade
corporal, cujo valor será realçado mais tarde.
Há também referências exteriores à França: por exemplo,
na corte, e mesmo nas repúblicas comerciais, seguiam-se sobretudo as referências da moda
espanhola, e não as da moda
francesa.
E, quando a moda francesa
começou a se tornar a referência principal, ela deu lugar à importância do mundo privado e à
valorização da intimidade.
Por conseqüência, os tecidos
leves, a renovação das roupas a
cada estação do ano e os usos
mais complexos de cada peça
vestimentar ganharam um lugar de destaque.
Mas é preciso lembrar que a
maioria das pessoas não podia
aderir a esse universo. E é importante estudar essa maioria
porque era ela, e não a elite, que
fornecia conteúdo ao perfil
econômico de uma sociedade,
mesmo quando se sabe o quanto a moda de elite circulava e
servia como referência.
Assim, não era apenas -ou
em primeiro lugar- na capital
francesa que as coisas ocorriam. Em Londres, existiam várias referências à importância
do privado, assim como na cidade de Avignon, por exemplo.
Rousseau chegou a dizer que,
em sua época, tornava-se impossível diferenciar uma duquesa de uma empregada pela
aparência. Mas evidentemente
as formas de diferenciação não
permaneceram as mesmas, e
outros códigos ou indícios permitiram realizar tal distinção.
Ao mesmo tempo, é no meio
urbano que se percebe a emergência da valorização de um
corpo individual e de roupas
que possuem mais relação com
a conquista de si mesmo.
FOLHA - Essa conquista de si mesmo não dependeria da produção de
uma esfera privada, concentrada
em certa densidade da cultura das
aparências que é característica da vida metropolitana?
ROCHE - De fato, a cidade é um
laboratório de produção e consumo de roupas. Ela é o lugar
por excelência da mobilidade e
das trocas, e é nela que emerge
a conquista da intimidade.
Mas é preciso tomar cuidado
com possíveis exageros, pois
um terço da população francesa vivia num "quarto-e-sala".
Muitos franceses não dispunham de espaço suficiente, não
podiam portanto desenvolver o
gosto pela intimidade e a valorização do mundo privado. E
também existiam diferentes influências.
Por exemplo, o século 18 foi
influenciado pelo sensualismo.
David Hume escreveu sobre o
luxo, um valor integrado na formação da individualidade.
FOLHA - Hoje a moda é bastante
evidente na mídia e na economia
mundial. O sr. acredita que, justamente por isso, a idéia de abarcá-la
poderia parecer ociosa e absurda?
ROCHE - Em nossos dias é preciso acreditar que estamos na
moda! Com o cinema, a imprensa e, sobretudo, com a televisão, desde meados do século
20 ocorre algo interessante: há
uma globalização das modas e
condutas, mas elas são ao mesmo tempo inimitáveis e extraordinárias.
Os homens da sociedade islâmica, por exemplo, consomem
a moda parisiense, mas o uso
das roupas femininas que eles
compram para as suas mulheres é reservado a determinados
espaços. Há uma relação importante entre moda e espaço.
FOLHA - A moda seria uma formidável indústria de sensibilidades?
ROCHE - Sim, de sentimentos e
atitudes.
Além disso, se até meados do
século passado Paris ocupava o
centro das atenções em matéria de moda, hoje há também
centros como Milão, Nova York
e, sobretudo, pontos de criação
de moda bem mais rápidos do
que esses grandes pólos e que
se situam entre eles.
São pontos invisíveis no
grande sistema global das modas, mas fundamentais para as
economias locais e, sobretudo,
para a fabricação de maneiras
de sentir e de ver o mundo.
FOLHA - Daí o entrelaçamento entre a moda e a produção de dois movimentos concomitantes: singularização e inclusão.
ROCHE - Sim, especialmente
quando se pensa nos pontos de
circulação que podem trabalhar no meio da imensa separação entre ricos e pobres existente hoje em dia.
O jeans, por exemplo, vindo
de um meio popular, se impôs
por toda parte; mas é justamente quando isso ocorre que passam a existir jeans e jeans!
Isso porque as formas de distinção e de inclusão social não
param de ser reinventadas,
nunca deixam de se deslocar no
tempo e no espaço.
DENISE BERNUZZI DE SANT'ANNA é professora livre-docente da Pontifícia Universidade
Católica (PUC-SP) e do mestrado em moda, arte
e cultura do Senac.
Texto Anterior: Luxo conceitual Próximo Texto: +Autores: Vagas e vogas da crítica Índice
|